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Solidão





"A solidão é fera, a solidão devora.
É amiga das horas, prima-irmã do tempo,
E faz nossos relógios caminharem lentos,
Causando um descompasso no meu coração."
— Alceu Valença, Solidão


Em um mundo onde a comunicação se tornou tão acessível, paradoxalmente, o isolamento social parece cada vez mais presente. A tecnologia e a expansão dos meios de comunicação nos seduzem com a promessa de eliminar os limites entre o eu e o outro. Embora a internet nos mantenha constantemente conectados, oferece uma falsa segurança de que nunca estaremos sós, mas na verdade, muitas vezes nos liga ao vazio. 
O Dicionário Larousse Cultural define a solidão como um estado de quem está só, com origens no latim solitudo, significando isolamento e ausência de relações sociais. Filosoficamente, é um componente inexorável da existência humana. A psicóloga clínica Cristiana Pereira explica que, apesar de universal, a solidão é complexa e única para cada indivíduo, não tendo uma única causa comum. Portanto, prevenção e tratamento variam amplamente entre as pessoas.
Freud, ao longo de sua obra, destacou a dependência essencial do ser humano em relação ao próximo para sobrevivência e desenvolvimento. Ele concebeu o desamparo como uma condição fundadora da humanidade, onde a solidão ganha novo significado, já que a humanização se dá nas relações interpessoais. Somos vulneráveis ao desejo e ao olhar dos outros, e essa dependência pode nos levar a anular nossos próprios desejos e nos alienar. Nos momentos de solidão, a angústia emerge, quando aspectos de nós mesmos, negados em prol do outro, irrompem à superfície (Freud, 1926/1993).
Melanie Klein, em “Sobre o sentimento de solidão” (1959), observa que a solidão não se trata apenas da ausência de companhia externa, mas de um sentimento interno de isolamento persistente, que pode subsistir mesmo em meio a amigos ou enquanto se recebe amor. Françoise Dolto também observa que a solidão é inerente à existência humana, pois desde o nascimento, nossa psique precisa da presença de outro para sentir-se povoada. Donald Winnicott, por volta de 1958, desenvolveu teorias sobre "a capacidade de estar só", considerando-a um sinal de maturidade emocional, distinta do medo ou desejo de solidão. 
Embora comumente atribuída à Pós-Modernidade como um sintoma cultural, a solidão, segundo Lacan, não pode ser vista exclusivamente assim, uma vez que o sintoma psicanalítico favorece os vínculos sociais, oposto ao efeito da solidão. A solidão não é algo que se escolhe ou abandona; fazemos parte dela. Cada um de nós é único e não conseguimos compartilhar plenamente todas as nossas sensações e transformações internas com outra pessoa. Clarice Lispector reflete sobre isso ao indagar se "amor será dar de presente um ao outro a própria solidão", enfatizando que entregar a solidão é oferecer-se integralmente.
Martin Heidegger, em "Ser e Tempo", afirma que estar só é uma condição original do ser humano, um estado inevitável desde o nascimento. A maneira como lidamos com a solidão e os sentimentos decorrentes — de liberdade ou abandono — nos distingue como indivíduos, influenciando nossa interpretação da origem de nossa existência.
Qual é a contribuição da Psicanálise em relação à solidão intrínseca ao ser humano? Na psicanálise, encontramos a oportunidade de fortalecer e desenvolver nossos recursos internos. Esta prática pode levar a um "amadurecimento emocional", que melhora significativamente as relações sociais e, consequentemente, reduz a sensação de solidão. Em termos psicanalíticos, oferece a possibilidade de transformar o desejo, motor da vida e promotor dos laços sociais, favorecendo a alteridade enquanto simultaneamente diminui a exaltação do Eu.


Daniel Lima
Psicanalist
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