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O carnaval como metáfora dos ciclos da experiência humana na psicanálise



O carnaval é uma festividade que marca o início e o término de um ciclo na cultura brasileira. Mas o que esse ciclo significa do ponto de vista psicanalítico? Este texto explora como a psicanálise, ao desbravar os profundos meandros da mente humana, fornece uma lente única para compreendermos a metáfora do início e término do carnaval como ciclos da experiência humana.

Para Freud, o fundador da psicanálise, a mente humana é composta por três instâncias: o id, o ego e o superego. O id é a parte mais primitiva e inconsciente da personalidade, que busca a satisfação imediata dos impulsos biológicos e psíquicos, seguindo o princípio do prazer. O ego, por sua vez, é a parte racional e consciente da personalidade, que busca o equilíbrio entre os desejos do id e as exigências da realidade externa, seguindo o princípio da realidade. Finalmente, o superego é a parte moral e crítica da personalidade, que representa os valores e normas sociais internalizados pelo indivíduo. O carnaval pode ser visto como uma manifestação do princípio do prazer, uma pausa temporária das restrições impostas pelo princípio da realidade. Nesse período, as pessoas se entregam a fantasias, desejos e impulsos normalmente reprimidos, vivenciando uma forma de liberdade psíquica. Elas podem, por exemplo, se fantasiar de personagens que admiram ou gostariam de ser, flertar e beijar desconhecidos, dançar e cantar sem se preocupar com o julgamento alheio. Esse período de indulgência e desinibição simboliza o início de um ciclo em que o id tem precedência temporária sobre o ego e o superego. A Quarta-Feira de Cinzas marca o retorno ao princípio da realidade, encerrando esse ciclo de libertação, com as demandas da vida cotidiana e as restrições sociais sendo reimpostas.

Ferenczi, um dos principais discípulos de Freud, poderia interpretar o carnaval como um espaço de regressão temporária, um conceito que ele valorizava no processo terapêutico. A regressão é um mecanismo psíquico pelo qual o indivíduo retorna a estados mais primitivos de consciência e expressão, abandonados ou reprimidos ao longo do desenvolvimento. Esses estados podem ser associados à infância, à sexualidade, à agressividade, à criatividade, entre outros. A regressão no carnaval permite uma exploração livre de aspectos da personalidade frequentemente ocultos, iniciando um ciclo de autoconhecimento e expressão. As pessoas podem, por exemplo, brincar, rir, chorar, gritar e abraçar, sem se preocupar com as convenções sociais ou com a coerência lógica. Elas podem também experimentar novas formas de se relacionar com os outros, com o ambiente e consigo mesmas, ampliando seu repertório de sentimentos e ações. A Quarta-Feira de Cinzas simboliza o término desse ciclo, encorajando a reintegração dessas experiências regressivas em uma compreensão mais madura e integrada do self.

Bion, outro importante psicanalista, contribui para essa metáfora com sua teoria do pensamento. O pensamento simbólico é a capacidade de representar experiências emocionais por meio de símbolos, como palavras, imagens e gestos. Esses símbolos permitem ao indivíduo comunicar, compreender e elaborar seus sentimentos, tornando-os mais suportáveis e significativos. O pensamento simbólico se contrapõe ao caos emocional, caracterizado por confusão, angústia e desorganização mental, provocados por sentimentos brutos e primários que não foram processados ou simbolizados. O carnaval representa um estado de contenção emocional, onde os sentimentos brutos e primários são vivenciados intensamente. Essa experiência, embora caótica, é necessária para o surgimento de pensamentos; é o início de um ciclo de processamento emocional. Durante o carnaval, as pessoas podem sentir medo, raiva, tristeza, alegria, amor e ódio de forma amplificada e descontrolada, sem saber lidar com essas emoções ou compreender seus significados. A Quarta-Feira de Cinzas pode ser vista como um momento de reflexão e elaboração dessas experiências, transformando o caos emocional do carnaval em pensamento simbólico. Este período de transformação marca o encerramento de um ciclo de crescimento emocional e cognitivo. As pessoas podem tentar entender o que sentiram, o que fizeram e o que aprenderam, utilizando os símbolos disponíveis na sua cultura e linguagem, dando significado às suas vivências carnavalescas.

Assim, ao considerarmos o início e o término do carnaval como metáforas para os ciclos da experiência humana, a psicanálise nos oferece uma rica tapeçaria de significados. O carnaval simboliza um momento de liberação, regressão e intensidade emocional, permitindo a emergência de conteúdos inconscientes e a expressão de desejos reprimidos. A Quarta-Feira de Cinzas, por outro lado, representa a necessidade de reintegrar essas experiências à nossa vida cotidiana, promovendo crescimento psíquico e emocional. Esse ciclo de abertura e fechamento, início e término, reflete o eterno processo de transformação e renovação que caracteriza a jornada humana. O carnaval, portanto, não é apenas uma festa, mas uma oportunidade de autoconhecimento, expressão e mudança.

Daniel Lima
Psicanalista.

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