"Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim."
(José Ortega y Gasset)
O banimento ou boicote de uma pessoa da arena pública não é uma novidade, mas agora, nas redes sociais, essa prática ganha força em nome da justiça social. A cultura do cancelamento, ou cultura do banimento, é uma forma moderna de ostracismo, onde uma pessoa ou um grupo é excluído de uma posição de influência ou fama devido a atitudes consideradas questionáveis — seja online, nos meios de comunicação social, no mundo real, ou em ambos. Cancelar alguém implica a tentativa de apagar sua existência, convertendo essa pessoa em um não-ser.
Na prática, funciona assim: um usuário de mídias sociais, como Twitter ou Facebook, testemunha um ato que considera errado, registra em vídeo ou foto, e posta em sua conta, marcando a empresa empregadora do denunciado, autoridades públicas ou outros influenciadores digitais que possam ampliar o alcance da mensagem. É comum que, em questão de horas, o post seja replicado milhares de vezes. Essa intencionalidade é, a meu ver, sintomática, pois é mais fácil criar muros separando quem difere de mim do que construir pontes relacionais e lidar com o diferente — um diferente que, diga-se de passagem, me pertence mas eu nego.
Chamo isso de sintomático porque reflete muito sobre nós mesmos e sobre a forma como estamos nos relacionando com o mundo e com o outro nesta era. Quando encontramos alguém e imediatamente pensamos "não gosto dessa pessoa", na verdade, encontramos nela algo que não gostamos em nós mesmos. Nisso reside a força para o cancelamento. Duas coisas acontecem: 1) Quando vejo no outro algo que desaprovo em mim, tenho a possibilidade de atacar esse conteúdo sem a sensação de autoaniquilamento; 2) Como o cancelamento ocorre nas redes sociais, utiliza-se uma espécie de avatar, permitindo agir sem que o outro possa ver quem atua, sem expor-se, sem olhar nos olhos — isso traz uma falsa sensação de segurança e revela-se um ato um tanto covarde.
Outro sintoma do cancelamento é reduzir o Outro a um objeto. Afinal, cancelamos passeios, eventos, planos, e isso reflete os vínculos atuais de coisificação do sujeito. Essa coisificação espelha nossa postura competitiva, narcisista e vazia. É fácil cancelar alguém; o difícil é se dispor a escutar, acessar o Outro, tentar dialogar, argumentar. Difícil é olhar para si mesmo e tentar identificar a razão pela qual esse outro tanto nos incomoda. Não transformemos o Outro em objeto. Não cancelemos, mas apontemos. Não cancelemos, mas escutemos. Não cancelemos, mas nos afastemos. Não cancelemos, mas argumentemos e nos autoanalisemos. Assim, criaremos pontes e relações respeitosas.
Daniel Lima
Psicanalista
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