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Felicidade em tempos de otimismo toxico.


“Se só quiséssemos ser felizes, seria fácil, mas queremos ser mais felizes que os outros, e isso é quase sempre difícil, porque acreditamos serem os outros mais felizes do que são.”
(Montesquieu, “Meus pensamentos.”)

Pollyanna é uma menina de onze anos que, após perder seus pais, é enviada para morar com uma tia má, que até então não conhecia. Para fugir dos problemas que enfrenta, ela adota o “jogo do contente”, que consiste em ver algo positivo em todas as situações, mesmo nas mais difíceis. Esta personagem central do livro homônimo escrito por Eleanor H. Porter, em 1913, virou sinônimo de alguém excessivamente otimista e até ingênuo, delineando o comportamento chamado Síndrome de Pollyanna. 

A Quem Interessa o Pensamento Positivo a Qualquer Custo?

Em vez de tentar ser feliz o tempo todo, as pessoas deveriam reconsiderar como lidam com os problemas. Muitos exibem uma vida irreal e fantasiosa nas mídias sociais, exaltando um grande otimismo que não corresponde à realidade. Quem vê esse tipo de conteúdo pode experimentar euforia ou tristeza, questionando seus próprios sentimentos. O psicanalista e mestre em filosofia Pedro De Santi associa a positividade tóxica ao negacionismo, que ele chama de “pensamento mágico”. Segundo ele, essa lógica leva à crença de que pensar positivamente resolverá tudo, como se bastasse para evitar a Covid sem outras precauções. Surge, então, a pergunta: a quem interessa o pensamento positivo a qualquer custo?

Felicidade Não É um Objetivo

Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) e psicanalista, afirmou em uma entrevista à CNN que “Felicidade tem a ver com viver intensamente o presente, para o bem e para o mal, com seus dias de pesar e gravidade, como os que estamos passando agora. Tem menos a ver com expectativas e mais com a realidade”. Estamos em tempos vulneráveis, onde a felicidade não deve ser um objetivo final, mas sim o efeito natural de uma vida plenamente vivida, com todas as suas tristezas, lutos, perdas e raivas. “A recomendação que Freud fez há mais de 90 anos não poderia ser mais atual: ‘cada um deve encontrar o seu caminho para a felicidade, e que ele seja o menos negacionista possível’”, conclui Dunker.

A Felicidade em Estado Contínuo É uma Fantasia

Em “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” (1916), Freud descreve manifestações clínicas que seguem o caminho oposto ao da satisfação do desejo. Ele observa que alguns pacientes resistem ao tratamento psicanalítico porque ficam doentes na iminência da realização de um desejo, ao contrário do esperado, quando se supõe que a frustração seja a raiz da doença. Freud sugere que, para alguns, a felicidade alcançada pela realização de desejos é intolerável, e portanto eles se agarram aos sintomas, evitando a cura. Ele conclui que a felicidade só existe em contraste com o sofrimento; é repentina e inesperada. Assim, a felicidade contínua é meramente uma fantasia, pois nosso conhecimento reside no contraste entre opostos.

Quer Realmente Ser Feliz?

Para realmente buscar a felicidade, é preciso aceitar a ambivalência da vida, rejeitando o conceito publicitário de felicidade e vivendo de maneira autêntica, sem negar os verdadeiros sentimentos. Como Espinoza afirmou em “Da origem e da natureza das afecções”: “Aceitar que nosso destino é só nosso. Que nossa tristeza ou alegria dependem de nós mesmos.” Isso reflete o conceito grego de valorizar o momento presente. Não se deve impor um otimismo superficial que nega as emoções reais. A felicidade não é um produto, nem um estágio alienante, mas sim parte de uma vida verdadeira. Portanto, seja você mesmo em sua singularidade, na alegria e na tristeza, e, caso o mal-estar se torne insuportável, busque ajuda especializada.


Daniel Lima
Psicanalista

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