Pular para o conteúdo principal

Trauma e transformação: a psicanálise de Klein e Bion na compreensão da violência sexual.



    A violência sexual é um evento traumático que pode causar profundas rupturas na estrutura psíquica do indivíduo, desencadeando uma série de reações internas complexas e muitas vezes debilitantes. Através das lentes da psicanálise de Melanie Klein e Wilfred Bion, podemos explorar as dinâmicas internas que surgem em resposta a tais traumas e o processo de recuperação que se segue, oferecendo uma visão mais profunda das forças psíquicas em jogo e das possibilidades de cura e transformação.
    Segundo Melanie Klein, a posição esquizoparanoideé uma fase do desenvolvimento infantil caracterizada pela divisão do objeto em 'bom' e 'mau'. Vítimas de violência sexual podem regredir a essa posição, onde o mundo é dividido entre segurança e perigo, refletindo a ansiedade e o medo experimentados. A violência sexual pode fazer com que a vítima sinta-se presa nessa posição, lutando para integrar a experiência traumática e mover-se para a posição depressiva, onde a ambivalência e a reparação são possíveis. Este movimento é crucial para a saúde psíquica, pois permite a reintegração do self e a reconciliação com as partes anteriormente divididas.
Klein introduziu o conceito de identificação projetiva, que Bion expandiu, sugerindo que ela pode ser usada defensivamente para lidar com pensamentos e sentimentos intoleráveis. Vítimas de violência sexual podem projetar partes de si mesmas que foram contaminadas pelo trauma em outros, como uma forma de se protegerem da dor completa da experiência. Esta projeção pode ser um mecanismo de defesa necessário inicialmente, mas eventualmente deve ser trabalhada na terapia para que a vítima possa reintegrar essas partes de volta ao self.
    Bion desenvolveu o conceito de função alfa, o processo pelo qual as experiências brutas e os elementos beta são transformados em pensamentos alfa, que podem ser pensados e simbolizados. Para vítimas de violência sexual, a capacidade de realizar essa transformação pode ser prejudicada, deixando-as sobrecarregadas por emoções e memórias não processadas. A terapia pode facilitar a função alfa, ajudando a vítima a digerir e transformar o trauma em algo que possa ser mentalizado e integrado.
    Ele também falou sobre a relação continente-contido, onde um indivíduo (o continente) ajuda outro a processar e compreender suas experiências emocionais (o contido). Para uma vítima de violência sexual, encontrar um contêiner, como um terapeuta ou um ente querido, é essencial para ajudar a processar o trauma e promover a cura. Este relacionamento terapêutico oferece um espaço seguro onde as emoções traumáticas podem ser contidas e trabalhadas.
    Klein acreditava que a inveja e a gratidão são emoções fundamentais que influenciam nossas relações com os outros. No contexto da violência sexual, a inveja pode surgir como uma resposta ao que foi tirado da vítima, enquanto a gratidão pode ser sentida em relação àqueles que oferecem apoio e compreensão durante a recuperação. A gratidão pode ser um poderoso antídoto para a inveja, ajudando a vítima a se reconectar com os outros e a valorizar o apoio recebido.
    Bion enfatizou a importância do desenvolvimento do pensamento para a saúde mental. Para vítimas de violência sexual, o desenvolvimento de uma capacidade de simbolizar o trauma é crucial. Através da simbolização, elas podem começar a entender e integrar o trauma em sua narrativa de vida, o que é um passo vital na recuperação. A capacidade de simbolizar permite que a vítima se distancie do evento traumático e o veja como parte de uma história maior, facilitando a cura.
    A teoria psicanalítica de Klein e Bion oferece uma estrutura para entender a complexidade do trauma da violência sexual e o caminho para a recuperação. Ao reconhecer a importância da posição esquizoparanoide, da identificação projetiva, da função alfa, do continente-contido, da inveja e da gratidão, e do desenvolvimento do pensamento, podemos começar a apreciar a jornada de cura que as vítimas de violência sexual empreendem. É uma jornada que requer tempo, paciência e um ambiente terapêutico que possa conter e transformar o trauma em algo que possa ser compreendido e integrado na história de vida do indivíduo, permitindo-lhes finalmente encontrar um sentido de paz e propósito após o trauma.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

Comentários

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Newsletter

Assine nossa newsletter e mantenha-se atualizado.

Postagens mais visitadas deste blog

Psicanálise, uma possível cura pelas palavras

“A psicanálise? Uma das mais fascinantes modalidades do gênero policial, em que o detetive procura desvendar um crime que o próprio criminoso ignora.” (Mario Quintana) Recentemente, escrevi sobre “a psicanálise e o processo analítico em poucas palavras”, onde ressalto que a proposta da psicanálise é auxiliar o indivíduo a se entender, não no sentido de alcançar um conhecimento completo sobre si mesmo, mas sim, de discernir as motivações inconscientes por trás dos comportamentos, das fantasias que permeiam as relações, dos sintomas, do mal-estar, etc. Na psicanálise, o analista ajuda o indivíduo a escutar-se, mesmo quando este traz a sensação de estar perdido. Esse sentimento, na verdade, pode indicar uma fuga do próprio desejo, do próprio eu, e a psicanálise possibilita o reconcilio consigo mesmo. No entanto, neste texto, pretendo abordar brevemente o processo que chamamos de "cura pelas palavras". O conflito do recalque Freud, ao investigar os sintomas corporais através da l...

O estranho familiar: bebês reborn e psicodinâmicas do inconsciente.

  A popularização dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos com detalhes minuciosos — provoca curiosidade, admiração e inquietação. Mais do que simples objetos de coleção ou brinquedos, esses artefatos têm ganhado um status simbólico que atravessa o lúdico e se aproxima do terapêutico. A partir de uma perspectiva psicanalítica, podemos interpretar esse fenômeno como expressão de fantasias inconscientes ligadas ao desejo, à perda, à reparação e à constituição do eu. Sigmund Freud oferece uma chave interessante ao abordar o conceito de “Unheimlich”, traduzido como “o estranho familiar” ou “o inquietante”. Os bebês reborn ocupam exatamente essa zona ambígua: enquanto reproduzem a forma de um bebê real, não são bebês; são bonecas, mas não se deixam reduzir à condição de brinquedo. Há algo de perturbador nesse limiar entre o animado e o inanimado, entre o vivente e a pura representação. É como se tocassem silenciosamente em um retorno do recalcado: o desejo de...

A “tinderização” das relações: o que os apps de encontro nos dizem sobre amar hoje.

    Você já parou para pensar no que o Tinder — e outros aplicativos de relacionamento — revelam sobre como nos relacionamos hoje? Muito além de uma ferramenta para marcar encontros, essas plataformas escancaram algo mais profundo: a forma como o amor, o desejo e os vínculos se transformaram na era da velocidade, da hiperconexão e do consumo afetivo. A gente vive o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida: tudo muda rápido, nada parece durar muito, e as relações humanas entram nessa mesma lógica. Os vínculos estão mais frágeis, menos comprometidos, mais “descartáveis”. E o Tinder é quase um símbolo disso. Deslizar para a direita ou para a esquerda se tornou uma metáfora do quanto passamos a escolher — e também a excluir — pessoas com um simples movimento de dedo, como quem escolhe uma roupa ou um filme na Netflix. Nesse contexto, como fica o amor? Como lidar com esse desejo de conexão em um ambiente em que tudo parece girar em torno da performance, da image...