Na psicanálise freudiana, o humor é considerado uma forma sofisticada de defesa psíquica. Em seu texto “O humor” (1927), Freud observa que ele permite ao sujeito enfrentar o sofrimento psíquico de modo criativo, preservando o prazer mesmo diante de situações dolorosas. Diferentemente do chiste ou do riso superficial, o humor expressa uma atitude do eu que se recusa a ser esmagado pela realidade, mantendo certa superioridade frente ao sofrimento. É como se o superego dissesse ao ego: “veja como o mundo pode ser ridículo, não vale a pena sofrer tanto por ele”.
Essa concepção freudiana revela que o humor não é uma forma de negação, mas uma rebelião do prazer diante da dor. Freud exemplifica com o caso do condenado que, a caminho da forca, ironiza: “A semana começa bem”. Nesse gesto, não há desespero, mas um deslocamento lúdico que transforma o trágico em cômico. O humor, aqui, surge como um gesto de liberdade subjetiva, onde até o superego, geralmente punitivo, mostra-se surpreendentemente benevolente. É o trágico sendo transfigurado sem ser negado.
Daniel Kupermann, em Ousar Rir: Humor, Criação e Psicanálise, retoma esse espírito freudiano e o amplia. Ele propõe três dimensões interligadas do humor: a metapsicológica, que o pensa como forma de sublimação e ilusão criativa; a cultural, que o entende como fenômeno social; e a clínica, que questiona o lugar do riso na análise. Kupermann destaca ainda o caráter grotesco do humor freudiano — mistura de horror e riso — herdeiro do romantismo que via no Witz uma ferramenta de emancipação intelectual e política.
Com o passar do tempo, autores contemporâneos aprofundaram essa leitura. O humor passou a ser compreendido também como um modo de elaboração psíquica, capaz de reconfigurar experiências traumáticas e de criar novas ligações entre afetos e representações. Na perspectiva pós-bioniana de Antonino Ferro, por exemplo, o humor pode funcionar como um “derivado narrativo”: uma narrativa transformada da experiência emocional bruta, que favorece a comunicação psíquica com o outro e cria continência simbólica.
Na sociedade atual, o humor habita paradoxos. Elizabeth Roudinesco fala em uma “sociedade depressiva”, onde a medicalização silencia o conflito, enquanto Gilles Lipovetsky aponta para uma “sociedade humorística”, na qual o riso é esvaziado de crítica e banalizado como ferramenta de adaptação social. Esse contraste evidencia como o humor, quando esvaziado de profundidade, pode ser apenas um verniz cínico — diferente do humor freudiano, que desafia a ordem e sustenta o desejo.
No setting analítico, o humor pode ter função terapêutica, como já intuía Ferenczi ao propor um “pacto de amizade tácita” entre analista e analisando. O riso compartilhado, desde que não seja traumático ou invasivo, pode abrir espaço para o jogo simbólico, reativar a criatividade e ajudar o sujeito a ressignificar seu sofrimento. Kupermann propõe que esse uso do humor questiona o excesso de seriedade na técnica clássica, sem nunca banalizar o sofrimento.
Além disso, o humor pode ser pensado como uma linguagem do inconsciente, que escapa à censura e permite que desejos e angústias se expressem de forma disfarçada, mas potente. Ele revela verdades incômodas de maneira suportável, abrindo espaço para a construção de sentido. Tanto na análise quanto na vida cotidiana, o humor pode ser uma forma de resistência subjetiva, um recurso de elaboração e uma afirmação da vitalidade psíquica.
Em última instância, o humor é um ato criativo e ético. Como demonstrou Freud ao ironizar a queima de seus livros pelos nazistas — “Na Idade Média, teriam me queimado; hoje, contentam-se com meus livros” —, o riso pode ser um gesto de coragem. Ele não nega a realidade, mas a transfigura, reafirmando o desejo e a liberdade do espírito. Rir, portanto, é também um modo de viver com dignidade.
Daniel Lima,
Psicanalista
@daniellima.pe
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