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Saúde mental e psicanálise: um olhar sobre o sofrimento psíquico no trabalho


 A crise de saúde mental no Brasil atingiu um nível alarmante, refletindo-se no aumento significativo de afastamentos por ansiedade e depressão nos últimos dez anos. O ambiente de trabalho tem sido um dos principais gatilhos para esses transtornos, seja pela sobrecarga de tarefas, seja por relações interpessoais tóxicas ou pela insegurança profissional. Os dados recentes apontam para a necessidade urgente de políticas eficazes que garantam não apenas suporte médico e psicológico, mas também mudanças estruturais nas condições laborais.
O trabalho ocupa um papel central na vida das pessoas, influenciando sua autoestima, identidade e estabilidade financeira. No entanto, quando as condições de trabalho se tornam insustentáveis, os efeitos na saúde mental podem ser devastadores. A pressão por metas excessivas, a competitividade exacerbada e a falta de reconhecimento são fatores que contribuem para o adoecimento psíquico. Sem espaços para escuta e acolhimento, muitos trabalhadores acabam internalizando seu sofrimento, o que pode levar a quadros graves de ansiedade e depressão.
A partir de maio de 2025, entra em vigor a atualização da Norma Regulamentadora nº 1 (NR-1), que exige das empresas a avaliação e gestão dos riscos psicossociais no ambiente corporativo. Essa medida representa um avanço na proteção da saúde mental dos trabalhadores, pois obriga as organizações a identificarem fatores que possam estar comprometendo o bem-estar emocional de seus funcionários. Essa abordagem preventiva pode reduzir significativamente os casos de afastamento e promover um ambiente de trabalho mais saudável.
A psicanálise, com sua escuta atenta e aprofundada, oferece um olhar diferenciado para a saúde mental no trabalho. Diferente de abordagens que focam apenas nos sintomas, a psicanálise busca compreender os conflitos inconscientes que levam ao sofrimento psíquico. Questões como angústia, sensação de desamparo e dificuldades de adaptação podem estar enraizadas em experiências infantis e dinâmicas psíquicas complexas, que se manifestam no ambiente de trabalho de diferentes formas.
O trabalho não é apenas uma atividade econômica; ele carrega significados subjetivos que se conectam à história individual de cada sujeito. Para algumas pessoas, ele representa realização; para outras, um peso insuportável. A psicanálise ajuda a compreender como cada sujeito atribui significado ao seu trabalho, revelando possíveis repetições de padrões inconscientes que podem estar na base do sofrimento. Essa compreensão possibilita ao trabalhador encontrar novas formas de lidar com suas dificuldades e transformar sua relação com o trabalho.
Os altos índices de afastamento por ansiedade e depressão não são apenas dados estatísticos; eles refletem um modelo de sociedade que exige produtividade extrema, deixando pouco espaço para o descanso e o autocuidado. A psicanálise nos convida a pensar até que ponto a busca incessante pelo desempenho máximo se tornou um imperativo interno, levando os sujeitos a ignorarem seus próprios limites e a desenvolverem sintomas psíquicos severos.
A psicanálise oferece um espaço único de escuta, permitindo que o sujeito expresse seu sofrimento sem julgamentos. Em um mundo onde a dor psíquica muitas vezes é minimizada ou medicalizada rapidamente, essa escuta atenta se torna fundamental. Ao nomear suas angústias e compreender sua origem, o sujeito pode ressignificar sua experiência e encontrar formas menos sofridas de viver e trabalhar.
A promoção da saúde mental no trabalho não pode se restringir apenas ao atendimento clínico individual. É fundamental que as empresas criem uma cultura organizacional que valorize o bem-estar emocional, reduzindo práticas abusivas e incentivando relações mais saudáveis entre os funcionários. Ambientes que permitem a expressão autêntica do trabalhador favorecem não apenas sua saúde psíquica, mas também sua produtividade e satisfação no trabalho.
Embora o cenário atual seja preocupante, há caminhos possíveis para transformar essa realidade. Investir em programas de apoio psicológico, desenvolver estratégias de prevenção e promover diálogos abertos sobre saúde mental são algumas das ações que podem reduzir o impacto do sofrimento psíquico no trabalho. A psicanálise, ao oferecer uma escuta qualificada, pode contribuir para que os trabalhadores compreendam suas angústias e encontrem formas mais saudáveis de lidar com os desafios laborais.
Apesar de todos os desafios, o trabalho não precisa ser fonte de sofrimento psíquico. Com mudanças estruturais, políticas públicas eficazes e uma abordagem terapêutica que valorize a subjetividade, é possível transformar o ambiente de trabalho em um espaço de realização e crescimento. A psicanálise, com sua escuta singular, pode ser uma grande aliada nesse processo, ajudando cada sujeito a encontrar um modo mais equilibrado de se relacionar com o trabalho e consigo mesmo.
 
Daniel Lima,
Psicanalista
@daniellima.pe
 

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