Pular para o conteúdo principal

Coronavírus: Psicanálise e o Tempo

 



"A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelas pulsões humanas de agressão e autodestruição."
(Sigmund Freud, O mal-estar na civilização, 1930)


O estresse durante o período de enfrentamento da epidemia de pânico desencadeada pela grave pandemia de COVID-19 exige o distanciamento social e pode causar uma série de problemas mentais e sociais. Vivemos uma angústia de morte e das incertezas quanto à doença; o pânico se manifesta entre as pessoas e as reações são as mais variadas. Uma delas é a negação do problema. Isso é evidente em todos os países, onde as pessoas minimizam a questão e não seguem os cuidados recomendados pelos especialistas e pelos sistemas de saúde.

O coronavírus revela de forma incisiva a fragilidade que assombra a existência humana e o quanto estamos vulneráveis diante de situações sobre as quais não temos controle. São momentos em que temos a nítida percepção de que o tempo, "essa indefinível cor que têm todos os retratos" (Quintana), realmente passa. Se estar consciente disso levará à paralisia ou à transformação interior será escolha de cada um de nós.

Freud nos mostrou que o inconsciente é atemporal, sem passado, presente e futuro. Ontem parece ser hoje e continuará sendo ontem amanhã, que, por sua vez, talvez venha a ser hoje. No inconsciente não existe o conceito que chamamos de passagem do tempo. Na verdade, o que se sente como falta de tempo é também um mecanismo inconsciente de defesa para não pensar que, diferentemente de outras espécies, os humanos podem ter consciência dessa passagem do tempo, da própria transitoriedade e da finitude. Não ter tempo para realizar tudo o que se deseja ou precisa pode levar à sensação ilusória de que sempre haverá tempo.

Daniel Lima
Psicanalista

Comentários

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Newsletter

Assine nossa newsletter e mantenha-se atualizado.

Postagens mais visitadas deste blog

O estranho familiar: bebês reborn e psicodinâmicas do inconsciente.

  A popularização dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos com detalhes minuciosos — provoca curiosidade, admiração e inquietação. Mais do que simples objetos de coleção ou brinquedos, esses artefatos têm ganhado um status simbólico que atravessa o lúdico e se aproxima do terapêutico. A partir de uma perspectiva psicanalítica, podemos interpretar esse fenômeno como expressão de fantasias inconscientes ligadas ao desejo, à perda, à reparação e à constituição do eu. Sigmund Freud oferece uma chave interessante ao abordar o conceito de “Unheimlich”, traduzido como “o estranho familiar” ou “o inquietante”. Os bebês reborn ocupam exatamente essa zona ambígua: enquanto reproduzem a forma de um bebê real, não são bebês; são bonecas, mas não se deixam reduzir à condição de brinquedo. Há algo de perturbador nesse limiar entre o animado e o inanimado, entre o vivente e a pura representação. É como se tocassem silenciosamente em um retorno do recalcado: o desejo de...

A “tinderização” das relações: o que os apps de encontro nos dizem sobre amar hoje.

    Você já parou para pensar no que o Tinder — e outros aplicativos de relacionamento — revelam sobre como nos relacionamos hoje? Muito além de uma ferramenta para marcar encontros, essas plataformas escancaram algo mais profundo: a forma como o amor, o desejo e os vínculos se transformaram na era da velocidade, da hiperconexão e do consumo afetivo. A gente vive o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida: tudo muda rápido, nada parece durar muito, e as relações humanas entram nessa mesma lógica. Os vínculos estão mais frágeis, menos comprometidos, mais “descartáveis”. E o Tinder é quase um símbolo disso. Deslizar para a direita ou para a esquerda se tornou uma metáfora do quanto passamos a escolher — e também a excluir — pessoas com um simples movimento de dedo, como quem escolhe uma roupa ou um filme na Netflix. Nesse contexto, como fica o amor? Como lidar com esse desejo de conexão em um ambiente em que tudo parece girar em torno da performance, da image...

O que é "cura" para a psicanálise? Um convite à ética da singularidade

A questão da "cura" em psicanálise é um dos pontos mais sensíveis e frequentemente mal compreendidos do campo. Longe de se alinhar à acepção médica que concebe a cura como a erradicação de uma patologia e o retorno a um estado de "normalidade" predefinida, a psicanálise propõe uma transformação estrutural da posição subjetiva do analisando frente ao seu mal-estar, ao seu desejo e à própria contingência da existência. Não se trata de uma supressão de sintomas, mas de uma reconfiguração da economia psíquica que os produziu. 1. As raízes freudianas: do sintoma à resignificação Para Sigmund Freud, o sintoma neurótico é uma formação de compromisso, um retorno do recalcado, uma tentativa do aparelho psíquico de dar conta de um conflito inconsciente insolúvel. Ele é um vestígio, uma representação simbólica de um desejo ou de uma vivência traumática que não pôde ser integrada. A meta da análise freudiana, portanto, não era simplesmente "eliminar" o sintoma, mas si...