“De tanto querer impressionar os outros, corremos o risco de nos pressionar de tal forma que perdemos a nós mesmos de vista.” — Daniel Lima
Tenho pensado no quanto, em certos momentos, a gente se esforça tanto para ser visto que acaba se perdendo de si. É um paradoxo que aperta: quanto mais a gente se molda ao que esperam de nós, mais longe ficamos do que somos de verdade, lá no fundo. A máscara que vestimos para agradar, para ser aceito, vai pesando, feito uma armadura que, em vez de proteger, sufoca a respiração da alma. E quando a gente se olha no espelho, às vezes percebe que já nem sabe onde termina a figura que mostramos para o mundo e onde começa quem a gente é — não no papel que interpretamos, mas na pulsação viva do nosso ser.
Não são em grandes dramas que essa perda se mostra, mas nos pequenos e discretos gestos do dia a dia. A gente percebe isso ao rolar o feed do Instagram e sentir que a vida da gente parece sem graça perto das imagens perfeitas ali expostas. Ou quando ensaiamos frases e sorrisos antes de uma reunião, como se a espontaneidade fosse um risco. Vemos no “sim” que sai da boca enquanto o corpo inteiro grita um “não”, só para não criar conflito ou para manter a imagem de prestativo. E notamos, com um certo incômodo, quando nos pegamos desejando coisas que, no fundo, não têm valor pra gente, mas que parecem ter um valor enorme para os outros, como se o desejo deles tivesse virado o nosso.
A sociologia nos lembra, com autores como Goffman, que a vida social é um grande palco: a gente se apresenta, ajusta os gestos para "dar uma boa impressão". E tudo bem até aqui, um pouco de "teatro" é preciso para viver junto. Mas a encenação vira prisão quando o personagem que apresentamos domina o espetáculo inteiro, silenciando o que acontece nos bastidores de nós mesmos. Pensadores como Cooley e Mead já falavam do "eu-espelho" – a gente se vê e se constrói muito pelo olhar do outro. Bourdieu acrescenta que estamos sempre em busca de reconhecimento e "capital" – os "likes" e a reputação, por exemplo, são fichas nessa economia. E nesse "espetáculo" que vivemos, como diria Debord, a imagem que projetamos de nós mesmos pode acabar valendo mais que a própria experiência. Zygmunt Bauman, com a "modernidade líquida", nos alertou sobre como tudo é frágil e como nos sentimos pressionados a estar sempre "atualizados". Foucault, com o "panóptico", nos faria notar que a gente acaba se vigiando o tempo todo, como se um olho invisível nos avaliasse sem trégua – hoje, um "panóptico digital" que mede atenção e produtividade.
A filosofia, por sua vez, nos cutuca por outro lado. Rousseau já dizia que existe o amor por si mesmo (saudável) e o amor por si através do olhar dos outros (que nos escraviza à comparação). Nietzsche nos alertou para o perigo de seguir a "manada", perdendo a nossa originalidade em nome da opinião geral. Kierkegaard falou do desespero de não querer ser quem se é, dissolvendo-se no "se" impessoal — "se faz assim", "se diz aquilo". Heidegger chamou isso de "vida inautêntica", quando a gente se deixa levar pelo que "se" espera, em vez de ser a gente mesmo. E Sartre diria que, ao fugir da liberdade de escolher e nos agarrar a um papel, estamos agindo de "má-fé". São alertas: há um preço alto por abrir mão da nossa voz interior em nome da aprovação.
E aqui a psicanálise nos oferece um olhar ainda mais profundo para esse drama. Freud e Lacan nos mostraram como somos cobrados por um "Supereu" que pede perfeição e nos faz correr atrás de um "ideal" inatingível. Buscamos no desejo do outro a garantia de que existimos – uma garantia que nunca chega por completo, porque o outro também tem suas faltas. Winnicott nos trouxe a valiosa ideia do "eu verdadeiro" (nosso núcleo mais espontâneo) e do "falso eu" (a máscara adaptativa). Para ele, a saúde mental mora na chance de ser a gente mesmo "em algum momento, em algum espaço", em um "ambiente suficientemente bom" que acolha a nossa espontaneidade.
Nesse ponto, o psicanalista Christopher Bollas nos ajuda a entender um pedaço importante desse quebra-cabeça. Aquele incômodo, a sensação de que a máscara pesa demais, o desejo por coisas que nem nos pertencem de verdade, costuma morar num lugar que ele chamou de "o não-pensado conhecido". Pense em algo que você "sabe" lá no fundo, uma experiência que te marcou, mas que nunca conseguiu botar em palavras, processar direito ou encaixar na sua história de vida. A pressão constante para "impressionar" e para ter um desempenho impecável acaba bloqueando a nossa "generatividade psíquica" – aquela capacidade natural da nossa mente de criar, de transformar a experiência em algo significativo e nosso. Em vez de nos permitirmos crescer e mudar a partir do que vivemos de forma autêntica, acabamos sendo moldados pelo que os outros esperam de nós, perdendo o acesso a essa parte tão vital e não-verbal de quem somos.
Já René Roussillon nos ajuda a clarear como nos construímos nas relações com os outros. Ele nos lembra que ser quem a gente é, é sempre uma construção com o outro. Mas ele também nos alerta: se a busca por reconhecimento externo é incessante, corremos o risco de cair numa espécie de "dependência primária", onde nossa identidade fica totalmente refém do que os outros pensam e validam. Essa dificuldade que a gente sente em separar a máscara social do nosso eu mais profundo mostra o quanto lutamos para construir nossos "auto-aparelhos" – quer dizer, nossos próprios "óculos internos" para conseguir nos enxergar, nos entender e integrar o que vivemos, especialmente o que é difícil de aceitar. O paradoxo é que, ao nos perdermos no desejo do outro, falhamos nesse processo essencial de nos olhar para dentro. Para que a nossa verdade apareça, é preciso um "trabalho do negativo" – ou seja, a coragem de suportar o que não é fácil ou agradável em nós.
Quando junto tudo isso e volto à minha própria experiência, entendo que a pergunta mais forte e radical – “quem eu seria se ninguém estivesse olhando?” – não me pede para sumir do mundo, mas para reajustar minha bússola interna. Não é para ignorar o olhar do outro, mas para tirar dele o poder de ser a única coisa que me define. O reconhecimento dos outros é, sim, um alimento importante para a nossa alma, como Bollas e Roussillon nos mostram, crucial para a gente dar forma ao que é "não-pensado" e construir quem somos. Mas se esse reconhecimento vira tudo, ele se torna veneno, impedindo que a gente floresça de verdade.
Essa volta para casa, essa redescoberta do nosso eu espontâneo e do "não-pensado conhecido", não se faz com grandes revoluções, mas com pequenos e firmes gestos do dia a dia, que são, na verdade, atos de um profundo trabalho psíquico:
· Silenciar o "panóptico digital": Desligar notificações, criar momentos sem tela, deixar um espaço para o tédio criativo. Permitir que o vazio seja o lugar onde a sua voz, aquela que não busca aplausos, possa ser ouvida. É um convite para a sua mente criar e se transformar livremente.
· Reconhecer o corpo como bússola: Notar quando um "sim" enrijece seus ombros e quando um "não" relaxa sua respiração. Nosso corpo, muitas vezes, é um sábio mensageiro do que ainda está "não-pensado conhecido", mostrando o que precisamos, mesmo antes de darmos nome a isso.
· Reaprender a conversar de verdade: Buscar encontros onde a gente não precisa "performar", onde a vulnerabilidade não é uma moeda de troca, mas uma forma de estar presente. Espaços onde o seu "eu verdadeiro" possa aparecer, sem a gente precisar vestir o "uniforme" da aprovação.
· Aceitar a "mediocridade necessária": Permitir-se ser apenas "médio" em algo que te dá alegria, sem a pressão de ter que ser brilhante sempre. É um jeito de se libertar do "Ideal do Eu" que o mundo tenta nos impor.
· Resgatar hobbies "improdutivos": Atividades que não te dão "likes" ou "status", mas que te devolvem um senso de inteireza — cozinhar sem postar, ler sem sublinhar para citar, caminhar sem rastrear os passos. São momentos para a mente "brincar" e criar livremente, sem a pressão de ter que "dar resultado".
· Fazer "contratos de fronteira": Decidir horários para se desconectar, limites para o que você expõe, o que é íntimo e o que é público — e manter esses limites com firmeza e carinho. É um ato de se "equipar" internamente, de colocar limites claros entre você e o que vem de fora.
· Praticar a sinceridade aos poucos: Fazer um diário de "pequenas honestidades" por dia; ter uma conversa semanal onde você diz algo difícil sem floreios; pedir ajuda de verdade uma vez por mês. Pequenos passos para dar voz àquilo que você "sabe lá no fundo", mas ainda não conseguiu expressar.
· Criar "cercas de cuidado": Escolher poucas pessoas de confiança – seus "ambientes suficientemente bons" – que consigam acolher sua verdade sem exigir que você "performem". Relações onde a gente se sinta seguro para se "soltar" um pouco, bancar o desconforto de se entender por dentro e aceitar o que é difícil.
Claro, nada disso apaga as contradições da vida. A psicanálise insiste que não tem como voltar a uma pureza original. Somos feitos de relações, atravessados por desejos que nem controlamos e por máscaras que, de um jeito ou de outro, também nos formam. A sociologia vai sempre lembrar que ninguém floresce sozinho, fora do convívio. E filósofos como Honneth diriam que só nos tornamos nós mesmos quando somos vistos e reconhecidos sem sermos humilhados. A autenticidade, então, não é solidão heroica, mas uma fidelidade a um eixo interno que sabe dialogar com o mundo sem se desfazer nele.
Talvez a meta não seja a perfeição ou a eliminação completa da nossa "persona", mas uma coerência dinâmica: saber ajustar a máscara sem perder o rosto; estar no palco da vida sem deixar a alma exilada na plateia. Em alguns dias, isso significa renegociar expectativas e aguentar o desconforto de desapontar; em outros, significa aprender a adiar o aplauso para ouvir um silêncio mais fundo — o silêncio que permite a voz daquele "saber" que estava guardado, finalmente ecoar.
No fim, a maior conquista não é o aplauso, mas o alívio de finalmente me reconhecer. Imperfeito, mas verdadeiro. Frágil, mas inteiro. A liberdade, talvez, comece aqui, nesse "sertão da alma": não em impressionar o mundo, mas em ter a coragem de habitar a minha própria vida — com a clareza de quem sabe que precisa dos outros para existir, e a firmeza de quem, por um ato de se fortalecer por dentro, já não entrega o volante do próprio caminho a nenhum olhar que venha de fora.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
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