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O que é "cura" para a psicanálise? Um convite à ética da singularidade


A questão da "cura" em psicanálise é um dos pontos mais sensíveis e frequentemente mal compreendidos do campo. Longe de se alinhar à acepção médica que concebe a cura como a erradicação de uma patologia e o retorno a um estado de "normalidade" predefinida, a psicanálise propõe uma transformação estrutural da posição subjetiva do analisando frente ao seu mal-estar, ao seu desejo e à própria contingência da existência. Não se trata de uma supressão de sintomas, mas de uma reconfiguração da economia psíquica que os produziu.


1. As raízes freudianas: do sintoma à resignificação

Para Sigmund Freud, o sintoma neurótico é uma formação de compromisso, um retorno do recalcado, uma tentativa do aparelho psíquico de dar conta de um conflito inconsciente insolúvel. Ele é um vestígio, uma representação simbólica de um desejo ou de uma vivência traumática que não pôde ser integrada. A meta da análise freudiana, portanto, não era simplesmente "eliminar" o sintoma, mas sim torná-lo significativo, desvelando seu sentido inconsciente e sua função na economia psíquica do sujeito. A famosa formulação freudiana "Onde o Id estava, o Ego deverá vir" aponta para um processo de expansão da consciência e de fortalecimento do Ego – não no sentido de um controle racional absoluto, mas de uma maior capacidade de lidar com as demandas pulsionais e as exigências da realidade externa e interna. A "cura" freudiana, assim, implicava uma liberação de energia psíquica antes aprisionada no conflito, permitindo ao sujeito uma maior capacidade de "amar e trabalhar", ou seja, de estabelecer vínculos afetivos maduros e de investir criativamente na vida, superando as inibições e repetições compulsivas. A análise visava a uma mudança na qualidade do sofrimento – de uma repetição cega para uma possibilidade de reflexão e escolha, com a dor neurótica sendo substituída pelo "sofrimento comum" da existência.

2. A radicalização lacaniana: do desejo à ética do sinthoma

Jacques Lacan radicalizou a compreensão do sintoma, especialmente em seu último ensino, quando o concebe como Sinthoma. Ele o distingue do sintoma neurótico clássico, que é uma mensagem a ser decifrada no registro do Simbólico. O sinthoma é uma modalidade singular de jouissance (gozo, aqui compreendido como um tipo de satisfação paradoxal, muitas vezes ligado ao sofrimento, que excede o prazer e está além do princípio do prazer), algo que "não para de não se escrever", um nó indissolúvel entre o Real, o Simbólico e o Imaginário. A "cura" lacaniana, portanto, não se traduz na supressão da jouissance (gozo) sintomática, mas na possibilidade de o sujeito estabelecer uma relação diferente com seu próprio gozo, não mais submetido a ele de forma alienada.
O ponto culminante da análise lacaniana é o "atravessamento da fantasia fundamental" (traversée de la fantasme, que significa o confronto e o reconhecimento da estrutura fantasmática inconsciente que organiza o desejo do sujeito). A fantasia não é uma ilusão a ser desmascarada, mas a estrutura que organiza o desejo do sujeito e sua relação com a falta fundamental (o objeto a). Atravessar a fantasia não é transcendê-la, mas reconhecer sua lógica estrutural e o lugar do sujeito em relação a ela. Isso implica uma queda do Sujeito Suposto Saber (o analista, mas também o próprio sujeito em sua ilusão de completude) e um confronto com a castração simbólica e o Real da existência. O final de análise, neste viés, é o momento em que o sujeito pode se desidentificar do significante-mestre que o prendeu em sua neurose e assumir uma nova posição, onde não mais recua diante de seu desejo, mas o acolhe em sua singularidade. É uma virada ética: a "cura" se torna a assunção da responsabilidade pelo próprio desejo e pela própria jouissance (gozo), em um movimento que não promete a felicidade, mas uma vida mais autêntica, menos governada pelas compulsões inconscientes e pelas demandas do Grande Outro.

3. As contribuições da escola britânica independente: do holding à mentalização

A tradição britânica, com figuras como D.W. Winnicott e Wilfred Bion, oferece outra perspectiva valiosa sobre a "cura". Winnicott, com sua teoria do ambiente facilitador e da mãe "suficientemente boa", concebe a análise como um holding environment (ambiente de sustentação ou acolhimento psíquico) – um espaço seguro e confiável que permite ao paciente regredir a estágios primitivos de dependência. A "cura", neste contexto, é a possibilidade de o Verdadeiro Self (Eu verdadeiro, a parte mais espontânea e autêntica da pessoa) emergir e ser integrado, superando as defesas do Falso Self (Eu falso, uma camada de proteção que se forma em resposta a um ambiente que não permite a expressão do Eu verdadeiro). É um processo de amadurecimento emocional que permite ao indivíduo ser espontâneo, criativo e autêntico, habitando o "espaço potencial" da ilusão e da experiência cultural.
Bion, por sua vez, introduz a ideia do aparelho para pensar pensamentos e da função α (alfa) do analista. O analista atua como um "container" (continente) para as ansiedades e elementos beta (não-digeridos, experiências emocionais brutas) do paciente, transformando-os em elementos alfa (pensáveis, experiências emocionais processadas e simbolizadas) através de sua própria capacidade de rêverie (função de sonhar acordado, ou a capacidade do analista de "digerir" e simbolizar as emoções projetadas pelo paciente). A "cura" bioniana está ligada ao desenvolvimento da capacidade do paciente de tolerar a frustração, de pensar sobre suas próprias experiências emocionais e de simbolizar o impensável. A função de mentalização, desenvolvida por Peter Fonagy e Mary Target, que integra aspectos da teoria do apego com a psicanálise, aprofunda esta ideia: a "cura" se manifesta na capacidade crescente do indivíduo de compreender seus próprios estados mentais e os dos outros em termos de pensamentos, sentimentos, crenças e desejos, regulando afetos e promovendo relacionamentos mais seguros.

4. A vertente relacional e intersubjetiva: a cura na cocriação do vínculo

A psicanálise relacional e intersubjetiva, proeminente nos EUA, critica a noção de neutralidade e anonimato do analista, enfatizando a natureza mutuamente influente da díade analítica. A "cura" aqui não é um processo unilateral de decifração por parte do analista, mas uma transformação que emerge da interação dinâmica e cocriada entre analista e analisando. A transferência e a contratransferência são vistas como fenômenos intersubjetivos, e o "aqui e agora" da sessão se torna o palco para a repetição e, mais crucialmente, a reparação de padrões relacionais disfuncionais internalizados. Jessica Benjamin, com sua teoria do reconhecimento mútuo, destaca que a "cura" envolve a capacidade de ver e ser visto pelo outro como um sujeito separado e igual, superando dinâmicas de dominação e submissão. Para Lewis Aron e Donnel Stern, a análise proporciona a simbolização da "experiência não formulada", transformando o implícito em explícito, permitindo a integração de aspectos dissociados do self (eu, si) através de uma relação autêntica e reparadora. A "cura" é, assim, a internalização de novas possibilidades de ser em relação.

5. A perspectiva de Laplanche: a des-tradução do enigmático

Jean Laplanche, com sua Teoria da Sedução Generalizada, propõe que o inconsciente não é apenas um repositório do recalcado, mas é fundamentalmente implantado na criança pelas "mensagens enigmáticas" e sexuadas dos adultos significativos. A psique infantil, por ser imatura, não tem as ferramentas para "traduzir" plenamente essas mensagens. O recalcamento original, portanto, é a própria incapacidade de tradução. A "cura", neste panorama, seria um processo de "dé-traduction" (des-tradução, processo de retrabalhar e ressignificar as mensagens enigmáticas que foram internalizadas e mal compreendidas) dessas mensagens enigmáticas na análise. Não se trata de desvelar um trauma único, mas de retrabalhar a própria gênese do inconsciente e a forma como o sujeito se constituiu em resposta a essas mensagens obscuras. A "cura" seria a possibilidade de dar um novo sentido, mais próprio, a esses "enigmas" fundantes, liberando o sujeito da repetição alienante de uma tradução inadequada.

Conclusão: a "cura" como ética do sujeito e não de adaptação

Em síntese, a "cura" em psicanálise transcende a mera remissão sintomática para se configurar como um processo complexo de subjetivação, reestruturação psíquica e responsabilização ética. Não é a promessa de uma vida sem conflitos ou de uma felicidade utópica, mas a de uma existência mais plena, autêntica e livre. Ela se manifesta na capacidade do sujeito de:

  • Compreender seu sofrimento em profundidade, dando-lhe sentido e não sendo mais refém de repetições cegas.
  • Assumir seu desejo e sua jouissance (gozo) em sua singularidade, sem ceder a eles ou alienar-se em sua busca.
  • Estabelecer relações mais autênticas e maduras, tanto consigo mesmo quanto com os outros.
  • Desenvolver sua capacidade de pensar, simbolizar e criar, transformando o impensável em pensável e o inarticulado em expressão.
  • Habitar o mal-estar inerente à condição humana com maior tolerância e responsabilidade, sem buscar soluções mágicas ou totalizantes.


A "cura" psicanalítica é, em última análise, um convite à ética da singularidade e da incompletude, um caminho para que o sujeito possa, de fato, "inventar-se" e encontrar seu próprio modo de existência no mundo.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe


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