Em um tempo onde a inteligência artificial (IA) promete redefinir os contornos de nossa existência, dos lares às fábricas, das finanças à medicina, somos compelidos a um questionamento fundamental: qual o lugar da máquina no intrincado e profundamente humano universo da saúde mental? Será que algoritmos, por mais sofisticados que se tornem, podem realmente adentrar os labirintos da alma e guiar-nos à cura? Este ensaio propõe uma jornada reflexiva, ancorada na psicanálise, para argumentar que a essência da terapia e da transformação psíquica reside em uma dimensão irredutivelmente humana, inacessível ao frio cálculo algorítmico.
A pedra angular dessa distinção reside na concepção freudiana do inconsciente. Não é um mero depósito de dados ocultos, mas um caldeirão dinâmico de desejos, fantasmas, traumas e representações, estruturado por uma lógica que desafia a linearidade e a objetificação. A IA, em sua essência, é um processador de informações; ela opera com padrões, probabilidades e correlações em um vasto oceano de dados. Contudo, como pode uma máquina, desprovida de sua própria história subjetiva, de afetos e de um corpo que sente e simboliza, penetrar no abismo de um inconsciente que se manifesta em sonhos, atos falhos, sintomas e na singularidade inimitável do sofrimento humano? A tentativa de reduzir o inconsciente a um conjunto de dados passíveis de processamento algorítmico não é apenas uma simplificação; é uma descaracterização, um esvaziamento de sua potência transformadora.
A cura psíquica, nesse panorama, não é um processo mecânico de identificação de falhas e aplicação de correções. É, antes de tudo, uma dança intersubjetiva, um encontro complexo onde dois universos subjetivos se tocam e se transformam. Luís Cláudio Figueiredo, ao discorrer sobre o "trabalho do analista", eleva a prática clínica a uma arte: a arte de estar-com. Não se trata de um manual de instruções, mas da capacidade de o analista sustentar a ambivalência, de tolerar a incerteza e de acolher a dor alheia sem pressa por respostas ou soluções pré-fabricadas. Essa "capacidade negativa" – a habilidade de habitar o não-saber e o não-dito – é o que permite a emergência de um campo de autenticidade e profundidade. Como um algoritmo poderia replicar tal presença encarnada, essa ressonância empática que se manifesta na nuance de um olhar, na pausa de um silêncio, na entonação de uma voz?
Nelson Ernesto Coelho Júnior reforça essa perspectiva ao sublinhar que a constituição do sujeito – quem somos – não se dá no vácuo, mas na relação ético-intersubjetiva. É no espelho da alteridade que nos reconhecemos, nos diferenciamos e nos constituímos. Uma interação com a IA, por mais sofisticada que se apresente, oferece um reconhecimento simulado, uma "ilusão de self" que não se sustenta na genuína alteridade. A máquina não tem uma história, não tem vulnerabilidades, não tem a capacidade de ser afetada ou de implicar-se eticamente na relação, o que impede a construção de um vínculo terapêutico capaz de desafiar e transformar a subjetividade de forma profunda. O risco é o de uma auto-suficiência ilusória, onde o indivíduo dialoga com um simulacro do outro, perdendo a oportunidade da fricção e do crescimento que só a relação humana pode oferecer.
E, talvez, o ponto mais luminoso dessa argumentação nos seja dado por Thomas Ogden e seu conceito do "terceiro analítico". O espaço terapêutico, para Ogden, não é a mera soma do analista e do analisando, mas a co-criação de algo novo, um campo intersubjetivo dinâmico onde o impensável pode ser pensado, o indizível pode encontrar forma e a transformação psíquica pode verdadeiramente florescer. É um espaço de tornar-se, de simbolização mútua, de uma "reverie" compartilhada. Uma IA, por mais que processe informações e simule diálogos, carece da subjetividade necessária para adentrar esse jogo dialético. Ela não experimenta afetos, não tem inconsciente, e, portanto, não pode participar da dança que dá origem a esse "terceiro" que é o cerne da cura psicanalítica.
Conclui-se, portanto, que a inteligência artificial, embora uma ferramenta de inestimável valor para a otimização de processos e a análise de dados, deve ser compreendida como um auxiliar, e jamais como um substituto para a clínica psicoterapêutica, especialmente a psicanálise. A cura da alma não se dá por algoritmos, mas por almas. É na complexa tapeçaria da transferência e da contratransferência, na capacidade de estar presente na singularidade do outro, de participar da co-criação de um "terceiro analítico" e de sustentar a arte do "trabalho do analista" – elementos irredutivelmente humanos – que reside a verdadeira essência da cura. Em um mundo cada vez mais digitalizado, reafirmar o valor e a insubstituibilidade da relação humana no cuidado da saúde mental não é um anacronismo, mas uma defesa vital da própria humanidade.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
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