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A tragédia da liminaridade e o desvelar do inquietante: a criatura de Frankenstein entre mundos e psiques


A criatura concebida por Victor Frankenstein ultrapassa a imagem simplista de um “monstro” ou de um “humano artificial”. Ela encarna um dos dilemas existenciais mais pungentes da literatura: o de habitar uma condição liminar. Não pertence ao mundo dos homens, que a temem e a rejeitam, tampouco ao mundo dos monstros, do qual seria a única habitante. Sua constituição feita de “pedaços de muitos” não é apenas uma descrição anatômica, mas uma metáfora radical para sua identidade fragmentada e para sua incessante busca por um lugar no universo. Nessa chave, a psicanálise ilumina camadas mais profundas de sua tragédia, revelando a experiência da alteridade, da exclusão e da impossibilidade de simbolizar plenamente a própria origem.

Desde o seu “nascimento”, a criatura é um ser sem categoria. Sua colagem heterogênea desafia as noções de unidade, filiação e origem natural. Ao mesmo tempo, ela pensa, sente e aprende, aspirando à conexão, ao amor e à aceitação — desejos profundamente humanos. Mas sua aparência a condena ao isolamento. Aqui, Freud nos oferece o conceito de Unheimliche (o inquietante): aquilo que é ao mesmo tempo familiar e estranho, íntimo e perturbador. A criatura é humana em sua estrutura e inteligência, mas grotesca em sua forma e ilegítima em sua origem. Ela devolve ao humano uma imagem deformada de si mesmo, evocando angústias ligadas ao reprimido: fantasias infantis, medos da castração, da fragmentação e do retorno do recalcado. Nesse sentido, a criatura torna-se depositária das projeções humanas, um espelho que reflete o terror da fragilidade do Eu e das fronteiras tênues entre vida e morte, natural e artificial, humano e inumano.

A rejeição de Victor Frankenstein é o primeiro e mais devastador trauma. No momento inaugural de sua existência, o criador — em posição de “pai” — recusa reconhecer seu “filho” como parte de si. Esse gesto, expressão da hybris narcísica de Victor, equivale a uma denegação do seu próprio lado sombrio. A criatura, privada de um objeto primário de amor, não encontra base para constituir um ego coeso. Falta-lhe o espelho primordial que permitiria reconhecer-se como digno de existir. O vazio resultante implode em ódio e vingança, não como maldade inata, mas como manifestação da pulsão de morte não metabolizada, ativada pelo trauma da rejeição. A sociedade, em vez de oferecer espaço para sublimação, apenas reforça a exclusão, cristalizando o ciclo de violência e ressentimento.

Sob a ótica ferencziana, podemos ler esse abandono inaugural como um trauma precoce sem elaboração, uma ferida psíquica que impede o sujeito de simbolizar a dor. A criatura, ao ser negada desde o início, encontra-se no que Ferenczi chamou de “confusão de línguas”: deseja ternura, mas recebe hostilidade e recusa. Tal descompasso entre anseio vital e resposta traumática desorganiza seu mundo interno e o lança numa experiência de desamparo radical. Em Winnicott, poderíamos dizer que faltou o holding básico, a sustentação ambiental que permitiria ao recém-nascido integrar-se gradualmente. Sem um “ambiente suficientemente bom”, a criatura não encontra espaço para o jogo criativo nem para a ilusão necessária ao amadurecimento emocional. Em vez de se sentir “real”, ela se percebe como intrusão, sobra, excesso.

A condição fragmentária da criatura não se limita à sua pele. Sua mente, construída por meio de observações clandestinas da vida humana, é um mosaico de linguagem, moralidade e cultura. Contudo, esse acúmulo não se integra, pois lhe é negada a experiência simbólica de pertencimento e de troca intersubjetiva. Sem um pai ou uma comunidade que sirvam de suporte para a formação do Superego, sua vida psíquica permanece distorcida, marcada por uma internalização precária de normas e ideais. O desejo de possuir uma companheira semelhante a si é mais do que a busca de amor: é uma tentativa desesperada de suturar a cisão interna, de curar a ferida narcísica primária e de alcançar uma forma mínima de integração subjetiva. Nesse pedido de alteridade reconhecível, escutamos o eco da necessidade winnicottiana de encontrar um outro que confirme a realidade do self.

Assim, a criatura de Frankenstein configura-se como um ser de fronteira, condenado à invisibilidade e à incompreensão. Sua identidade múltipla não é vivida como riqueza, mas como fardo insuportável. Sob a luz da psicanálise, ela surge como figura paradigmática do inquietante: um ser projetivo, no qual a humanidade deposita seus medos, recalques e fantasmas de desintegração. Mais do que uma ficção de terror, sua existência dramatiza o fracasso do criador em integrar sua própria sombra e a incapacidade da sociedade de acolher o diferente. A monstruosidade, nesse sentido, não está na criatura, mas na recusa humana de reconhecer no “outro” um reflexo de si mesmo.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe


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