
Como psicanalista, vejo na clínica diária um dos sofrimentos mais intrigantes e profundos: aquele em que o próprio sujeito parece empenhado em voltar-se contra si mesmo. Este não é um desejo simples de desaparecer, mas uma compulsão ativa, muitas vezes silenciosa, que mina a própria vitalidade. Desde Freud, compreendemos que há algo em nossa vida psíquica que escapa à simples lógica do prazer. Em Além do Princípio do Prazer (1920), ele nos apresentou a ideia da pulsão de morte – uma tendência inconsciente, inerente à vida, que busca um retorno à quietude absoluta, ao inorgânico. Em meu trabalho, vejo esta força se manifestar não como um evento único, mas como um processo sutil e corrosivo: na autossabotagem que frustra o progresso, na repetição de escolhas dolorosas e, de forma mais aguda, nos impulsos que parecem desafiar o instinto de preservação.
Em minha escuta, percebo que este movimento nunca acontece isoladamente. No modelo estrutural freudiano, que tanto ilumina minha prática, o eu se encontra num conflito permanente. Ele é pressionado pelas demandas do id, pelo mundo externo e, de modo crucial, por um supereu que pode se tornar um verdadeiro carrasco interno. Em alguns pacientes, esta instância crítica – formada a partir das internalizações infantis – adquire feições sádicas extraordinárias. Transforma-se num tirano interior que não busca a adaptação, mas a punição, e o sujeito, identificando-se com este verdugo, torna-se cúmplice de sua própria flagelação psíquica.
Muitas vezes, ao seguir as associações livres do paciente, encontramos as origens desta configuração em experiências traumáticas precoces. A contribuição de Ferenczi é, para mim, fundamental aqui. Sua "confusão de línguas" descreve com precisão como a criança, violentada em sua subjetividade, é forçada a introjetar a agressão do adulto, transformando-a em autoataque para preservar o vínculo vital. Winnicott, por outro caminho, me ajuda a ver como falhas ambientais primitivas – a falta de um holding suficientemente bom – podem forjar um falso self, sob o qual um self verdadeiro raivoso e negado acaba direcionando seu ódio contra si mesmo. E Klein me ensina a reconhecer os ecos de objetos internos persecutórios que, não elaborados, atacam o eu desde dentro.
Claro, a consciência não suportaria a revelação crua destes conteúdos. Por isso, em minha escuta, busco os rastros dos mecanismos de defesa que os mascaram. A negação permite ao paciente formular um desejo destrutivo sob a forma de uma negação ("Não é que eu queira me machucar, mas..."). A projeção ejecta a destrutividade para o exterior, mas frequentemente ela retorna redobrada, num ciclo de introjeção hostil que reforça a autocrítica. Meu trabalho é ajudar o paciente a perceber que ele está perpetuando um ataque interno que corrói sua base de existência.
E é aqui que vejo a verdadeira potência do processo analítico. Meu objetivo não é – nem poderia ser – erradicar a destrutividade, pois a pulsão de morte é constitutiva. Meu papel é oferecer um espaço onde este ato mudo de autodestruição possa se transformar em experiência simbolizável, em narrativa. O palco para esta transformação é a transferência. É na relação com o analista que o paciente reencena seus dramas internos, projetando no analista a figura do carrasco, do objeto negligente ou do id voraz. Freud ensinou que esta repetição é o motor do tratamento. Winnicott mostrou que o setting – com sua constância e confiabilidade – deve funcionar como um ambiente de holding. Ao sobreviver aos seus ataques sem retaliar ou desmoronar, devolvo ao paciente uma experiência crucial: a de que sua destrutividade não é catastrófica e pode ser metabolizada.
Assim, o que ofereço não é uma explicação, mas uma experiência relacional transformadora. No espaço psicanalítico, o que era acting out como sintoma ou autossabotagem, lentamente ganha palavras e significados. Ao se tornar pensável, o que antes era um ferimento cego abre caminho para a criação. Não prometo um paraíso sem conflito, mas a possibilidade de que o conflito interno deixe de ser uma guerra de extermínio para se tornar um diálogo vivo. E talvez seja justamente neste árduo trabalho de tecer com as linhas mais escuras de si mesmo que o sujeito possa reencontrar uma vida mais inteira, criativa e menos refém das forças silenciosas que, desde as sombras, ditam seu aprisionamento.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
Comentários
Postar um comentário