Há algo profundamente revelador no fato de que a Black Friday tenha se tornado um dos eventos mais aguardados do calendário brasileiro. Não se trata apenas de economia doméstica ou oportunismo comercial. Estamos diante de um fenômeno que desnuda, com precisão cirúrgica, as contradições da condição humana contemporânea: a promessa de felicidade através da posse, o alívio momentâneo da angústia existencial e a perpétua busca por um objeto que finalmente nos complete.
A falta que nos constitui
Sigmund Freud, ao mapear os territórios do inconsciente, descobriu algo que o marketing contemporâneo conhece muito bem: somos seres de falta. Não uma falta acidental, que pode ser preenchida com o objeto certo, mas uma falta estrutural, constitutiva de nossa humanidade. É ela que nos move, que nos faz desejar, criar, sonhar. Paradoxalmente, é também ela que nos torna vulneráveis às promessas de completude que o mercado oferece a cada nova campanha publicitária.
Jacques Lacan radicalizou essa compreensão ao demonstrar que o desejo humano é sempre desejo do Outro – desejamos ser reconhecidos, amados, validados. Quando compramos, raramente compramos apenas um objeto; compramos um lugar simbólico, uma identidade, uma promessa de pertencimento. O tênis de marca não é apenas calçado; é juventude, sucesso, aceitação social. O smartphone top de linha não é apenas tecnologia; é eficiência, modernidade, status.
O teatro da urgência
A Black Friday opera como um teatro sofisticado onde se encenam nossas mais profundas ansiedades. Os contadores regressivos não apenas marcam o tempo; eles dramatizam nossa finitude. As "últimas unidades" não apenas indicam escassez; elas mobilizam nosso medo primordial de ficar de fora, de perder o amor do Outro. É um espetáculo que transforma a reflexão em urgência e o desejo em compulsão.
Martin Heidegger, em suas reflexões sobre a técnica moderna, alertou para como a sociedade industrial transforma tudo – inclusive os seres humanos – em recursos disponíveis para exploração. Na era digital, essa lógica se sofistica: somos simultaneamente consumidores e produtos, gerando dados que alimentam algoritmos cada vez mais precisos em identificar e estimular nossos pontos de vulnerabilidade psíquica.
A diferença que faz a diferença
Distinguir entre desejo e necessidade não é exercício acadêmico; é questão de saúde mental e financeira. A necessidade tem contornos objetivos: o aquecedor no inverno rigoroso, o remédio para a doença, o alimento para a fome. O desejo, por sua vez, é sempre simbólico, infinito, irredutível ao objeto que o representa momentaneamente.
Quando confundimos desejo com necessidade, caímos na armadilha do que poderíamos chamar de "imperativo consumista": a crença de que precisamos de algo que, na verdade, apenas desejamos. Essa confusão é alimentada por um discurso cultural que transformou o consumo em dever moral. "Você merece", "se cuide", "invista em você" – frases que soam como cuidado, mas que frequentemente mascaram a injunção: "consuma ou seja excluído".
O alívio que não alivia
Por que comprar oferece alívio momentâneo da angústia? A resposta está na própria estrutura do ato: ele nos dá a ilusão de controle sobre nossa vida, transforma a passividade em ação, oferece um objeto concreto para nossa ansiedade difusa. O problema é que esse alívio é estruturalmente temporário. O objeto real jamais coincide com o objeto fantasiado. A geladeira nova não traz a felicidade familiar prometida; o carro zero não oferece a liberdade sonhada; a roupa da moda não garante a aceitação social desejada.
Melanie Klein nos ensinou que lidamos com ansiedades primitivas através de mecanismos de defesa que podem incluir a idealização de objetos externos. O consumo compulsivo frequentemente opera como uma "solução maníaca": uma tentativa de negar a dependência, a fragilidade, a finitude. Compramos para nos sentirmos potentes, autossuficientes, invulneráveis. Mas como a realidade sempre retorna, o ciclo se repete, muitas vezes com juros compostos – literalmente.
Quando o sintoma fala
A compulsão por compras raramente é sobre os objetos em si. É um sintoma que fala de outras questões: solidão, baixa autoestima, ansiedade, depressão, vazio existencial. Para a psicanálise, o sintoma tem sempre uma função: ele organiza o sofrimento de uma forma que o torna suportável, ainda que problemática.
Reconhecer os sinais – comprar para regular emoções, esconder gastos, endividar-se repetidamente – não deve gerar culpa, mas cuidado. O primeiro passo não é parar de comprar, mas entender o que a compra está tentando resolver. Que vazio está tentando preencher? Que ansiedade está tentando acalmar? Que reconhecimento está buscando?
Resistências possíveis
Resistir ao imperativo consumista não significa abraçar o ascetismo, mas desenvolver o que poderíamos chamar de "consciência desejante". Isso inclui:
Temporalização do impulso: Criar intervalos entre o impulso e a ação. Vinte e quatro horas podem ser suficientes para que o desejo se revele como necessidade real ou como ansiedade disfarçada.
Questionamento socrático: "O que estou realmente buscando com esta compra?" "Este objeto me aproxima de quem quero ser ou apenas de quem acho que devo parecer?" "Existem outras formas de alcançar o que busco?"
Higiene digital: Reconhecer que nossos dispositivos são projetados para maximizar o tempo de tela e minimizar a reflexão. Desativar notificações, remover aplicativos de compras, usar bloqueadores de sites podem ser estratégias de autocuidado, não de privação.
O verdadeiro desconto
Talvez o maior desconto que possamos nos oferecer não esteja em nenhuma promoção, mas na capacidade de distinguir entre o que realmente precisamos e o que nos fazem acreditar que precisamos. Entre o que nos completa temporariamente e o que nos realiza duradouramente. Entre o ter e o ser.
A filosofia antiga já sabia: a felicidade não está na multiplicação dos prazeres, mas na sabedoria de distinguir entre prazeres que nos elevam e prazeres que nos escravizam. A psicanálise contemporânea confirma: o bem-estar duradouro vem não da satisfação de todos os desejos, mas da capacidade de simbolizar, elaborar e, quando necessário, adiar.
Conclusão
Não se trata de demonizar o consumo ou romantizar a privação. Trata-se de reconhecer que somos seres desejantes em uma cultura que lucra com nossa vulnerabilidade psíquica. Trata-se de desenvolver anticorpos contra a manipulação sem perder a capacidade de desfrutar dos prazeres legítimos da vida.
A Black Friday continuará existindo, os algoritmos ficarão cada vez mais sofisticados, as tentações se multiplicarão. Mas talvez possamos desenvolver uma relação mais consciente com nossos desejos, mais crítica com as promessas do mercado, mais cuidadosa com nossa saúde mental e financeira.
Afinal, o carrinho pode estar vazio, mas isso não significa que o coração precise estar. Às vezes, a maior abundância está justamente na capacidade de reconhecer quando já temos o suficiente.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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