A formação do psicanalista não é um processo linear nem se reduz à obtenção de um título ou à frequência a cursos e seminários. Trata-se, antes, de uma travessia subjetiva: um percurso de implicação que se constrói no entrelaçamento entre teoria, análise pessoal e prática clínica. Desde Freud, a formação analítica caracteriza-se por uma tensão essencial — ninguém pode formar outro analista no sentido tradicional. O analista se forma na e pela experiência do inconsciente, em um processo que não admite mestria técnica ou pedagógica convencional.
Freud, em Análise terminável e interminável (1937), já apontava o caráter interminável da formação analítica. Não há ponto de chegada, e sim um constante movimento de retorno: ao próprio inconsciente, ao texto freudiano, à experiência viva com o paciente. O analista se forma ao confrontar-se com aquilo que, em si mesmo, resiste à simbolização. É por meio desse encontro com o próprio limite que ele pode escutar o limite do outro. A formação não é um percurso cumulativo, mas sim um trabalho de depuração, de desinvestimento do ego como lugar de saber.
Jacques Lacan radicaliza essa concepção ao afirmar que “o analista só se autoriza por si mesmo e por alguns outros”. Essa frase, tantas vezes repetida, não é um apelo à autonomia individual, e sim à responsabilidade ética diante da função analítica. Formulada no contexto da criação da École Freudienne de Paris e do dispositivo do passe, essa proposição questiona a autorização institucional tradicional e desloca a legitimidade do ato analítico para a experiência singular de cada um. Autorizar-se como analista é reconhecer-se como efeito da própria análise. Trata-se de alguém que, tendo atravessado sua fantasia fundamental, pode sustentar o lugar de objeto causa do desejo do outro. A formação, nesse sentido, é uma travessia ética: o analista só pode ocupar sua função se renunciar à ilusão de que sabe o que é melhor para o paciente.
Donald Winnicott, por outro lado, introduz uma dimensão essencial para pensar a posição do analista: a capacidade de estar só. Esse conceito, originalmente desenvolvido no contexto do amadurecimento infantil, descreve a possibilidade de sustentar a própria presença sem necessidade de preenchimento imediato — condição fundamental para que o inconsciente do outro possa emergir. Estar só é suportar o vazio, o espaço de não saber. O analista que se apressa a interpretar ou que deseja preencher o silêncio impede o processo de simbolização. A formação é também um exercício de tolerância à incerteza, de confiança no processo psíquico e na capacidade criativa do sujeito.
Wilfred Bion, ao propor a postura de “escutar sem memória e sem desejo”, amplia esse horizonte. Para ele, o analista não deve buscar confirmar hipóteses nem antecipar conclusões, mas permitir que o pensamento do paciente se forme na relação. A formação analítica, sob essa perspectiva, é o cultivo de uma mente receptiva: uma mente que pensa com o outro, não sobre ele. Essa disposição requer anos de trabalho interno — desmontar defesas, desarmar certezas e suportar o desconforto de estar em contato com o indeterminado.
André Green contribui para esse debate ao pensar a formação como um processo de construção de um “espaço analítico interno”. É no interior do analista que se constitui o campo no qual o inconsciente do paciente pode operar. Esse espaço não é dado; ele se constrói na intersubjetividade, a partir das experiências de contratransferência, das falhas, dos silêncios e das ressonâncias afetivas. A formação não é a assimilação de técnicas, mas o trabalho contínuo de manter viva a capacidade de pensar a partir da experiência emocional.
Antonino Ferro e Thomas Ogden, representantes da psicanálise contemporânea, recolocam a ênfase na criatividade e na narratividade do campo analítico. Para Ferro, o analista é um “contador de histórias inconscientes” — alguém que ajuda o paciente a transformar elementos brutos (elementos beta, na linguagem de Bion, conteúdos não-metabolizados, sensoriais, pré-verbais) em narrativas significativas. Para Ogden, o processo analítico é uma “experiência de terceiro”, uma co-criação de realidades psíquicas que não pertencem nem ao analista nem ao paciente isoladamente. Essas perspectivas mostram que a formação é também uma abertura estética — uma sensibilidade que se educa no contato com o outro, na escuta das formas pelas quais o sofrimento busca se dizer.
Na contemporaneidade, o percurso formativo do analista enfrenta novos desafios. O excesso de informações, a aceleração dos vínculos e a lógica performativa das redes sociais produzem sujeitos fragmentados, marcados pela urgência e pela falta de tempo para pensar. Nesse cenário, a psicanálise resiste como um espaço de pausa, de desaceleração, de retorno à palavra. Formar-se analista hoje é também sustentar um modo de presença contracultural: escutar onde há ruído, acolher o vazio onde tudo pede preenchimento.
Cabe lembrar que a formação clássica, desde a International Psychoanalytical Association (IPA), estrutura-se sobre um tripé: análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico. Esse modelo, ainda que questionado por diferentes correntes — especialmente por Lacan, que criticava a burocratização institucional e propunha o passe como alternativa —, permanece como referência para pensar a transmissão da psicanálise. No Brasil, autores como Fabio Herrmann, Luiz Carlos Nogueira e Christian Dunker têm contribuído para repensar a formação à luz das singularidades de nossa cultura clínica, enfatizando a dimensão ética, política e social do ato analítico.
O analista, em última instância, é aquele que se autoriza a sustentar o não saber, a suportar a angústia sem recuar para respostas prontas. Ele se forma — e se transforma — no encontro com cada paciente, nas falhas, nas hesitações e nas pequenas descobertas que emergem da escuta. Sua formação nunca se conclui porque o inconsciente é, por natureza, inesgotável.
Formar-se psicanalista é construir uma ética: a ética de sustentar o desejo e o limite, a palavra e o silêncio, o humano e o indizível. É um trabalho de uma vida inteira — um ofício que se faz na escuta, no desamparo e na esperança silenciosa de que, ao se dizer, o sujeito possa encontrar novas formas de existir.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
Freud, em Análise terminável e interminável (1937), já apontava o caráter interminável da formação analítica. Não há ponto de chegada, e sim um constante movimento de retorno: ao próprio inconsciente, ao texto freudiano, à experiência viva com o paciente. O analista se forma ao confrontar-se com aquilo que, em si mesmo, resiste à simbolização. É por meio desse encontro com o próprio limite que ele pode escutar o limite do outro. A formação não é um percurso cumulativo, mas sim um trabalho de depuração, de desinvestimento do ego como lugar de saber.
Jacques Lacan radicaliza essa concepção ao afirmar que “o analista só se autoriza por si mesmo e por alguns outros”. Essa frase, tantas vezes repetida, não é um apelo à autonomia individual, e sim à responsabilidade ética diante da função analítica. Formulada no contexto da criação da École Freudienne de Paris e do dispositivo do passe, essa proposição questiona a autorização institucional tradicional e desloca a legitimidade do ato analítico para a experiência singular de cada um. Autorizar-se como analista é reconhecer-se como efeito da própria análise. Trata-se de alguém que, tendo atravessado sua fantasia fundamental, pode sustentar o lugar de objeto causa do desejo do outro. A formação, nesse sentido, é uma travessia ética: o analista só pode ocupar sua função se renunciar à ilusão de que sabe o que é melhor para o paciente.
Donald Winnicott, por outro lado, introduz uma dimensão essencial para pensar a posição do analista: a capacidade de estar só. Esse conceito, originalmente desenvolvido no contexto do amadurecimento infantil, descreve a possibilidade de sustentar a própria presença sem necessidade de preenchimento imediato — condição fundamental para que o inconsciente do outro possa emergir. Estar só é suportar o vazio, o espaço de não saber. O analista que se apressa a interpretar ou que deseja preencher o silêncio impede o processo de simbolização. A formação é também um exercício de tolerância à incerteza, de confiança no processo psíquico e na capacidade criativa do sujeito.
Wilfred Bion, ao propor a postura de “escutar sem memória e sem desejo”, amplia esse horizonte. Para ele, o analista não deve buscar confirmar hipóteses nem antecipar conclusões, mas permitir que o pensamento do paciente se forme na relação. A formação analítica, sob essa perspectiva, é o cultivo de uma mente receptiva: uma mente que pensa com o outro, não sobre ele. Essa disposição requer anos de trabalho interno — desmontar defesas, desarmar certezas e suportar o desconforto de estar em contato com o indeterminado.
André Green contribui para esse debate ao pensar a formação como um processo de construção de um “espaço analítico interno”. É no interior do analista que se constitui o campo no qual o inconsciente do paciente pode operar. Esse espaço não é dado; ele se constrói na intersubjetividade, a partir das experiências de contratransferência, das falhas, dos silêncios e das ressonâncias afetivas. A formação não é a assimilação de técnicas, mas o trabalho contínuo de manter viva a capacidade de pensar a partir da experiência emocional.
Antonino Ferro e Thomas Ogden, representantes da psicanálise contemporânea, recolocam a ênfase na criatividade e na narratividade do campo analítico. Para Ferro, o analista é um “contador de histórias inconscientes” — alguém que ajuda o paciente a transformar elementos brutos (elementos beta, na linguagem de Bion, conteúdos não-metabolizados, sensoriais, pré-verbais) em narrativas significativas. Para Ogden, o processo analítico é uma “experiência de terceiro”, uma co-criação de realidades psíquicas que não pertencem nem ao analista nem ao paciente isoladamente. Essas perspectivas mostram que a formação é também uma abertura estética — uma sensibilidade que se educa no contato com o outro, na escuta das formas pelas quais o sofrimento busca se dizer.
Na contemporaneidade, o percurso formativo do analista enfrenta novos desafios. O excesso de informações, a aceleração dos vínculos e a lógica performativa das redes sociais produzem sujeitos fragmentados, marcados pela urgência e pela falta de tempo para pensar. Nesse cenário, a psicanálise resiste como um espaço de pausa, de desaceleração, de retorno à palavra. Formar-se analista hoje é também sustentar um modo de presença contracultural: escutar onde há ruído, acolher o vazio onde tudo pede preenchimento.
Cabe lembrar que a formação clássica, desde a International Psychoanalytical Association (IPA), estrutura-se sobre um tripé: análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico. Esse modelo, ainda que questionado por diferentes correntes — especialmente por Lacan, que criticava a burocratização institucional e propunha o passe como alternativa —, permanece como referência para pensar a transmissão da psicanálise. No Brasil, autores como Fabio Herrmann, Luiz Carlos Nogueira e Christian Dunker têm contribuído para repensar a formação à luz das singularidades de nossa cultura clínica, enfatizando a dimensão ética, política e social do ato analítico.
O analista, em última instância, é aquele que se autoriza a sustentar o não saber, a suportar a angústia sem recuar para respostas prontas. Ele se forma — e se transforma — no encontro com cada paciente, nas falhas, nas hesitações e nas pequenas descobertas que emergem da escuta. Sua formação nunca se conclui porque o inconsciente é, por natureza, inesgotável.
Formar-se psicanalista é construir uma ética: a ética de sustentar o desejo e o limite, a palavra e o silêncio, o humano e o indizível. É um trabalho de uma vida inteira — um ofício que se faz na escuta, no desamparo e na esperança silenciosa de que, ao se dizer, o sujeito possa encontrar novas formas de existir.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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