Quando Schopenhauer afirma que vivemos “entre a ânsia de ter e o tédio de possuir”, ele não está apenas fazendo uma observação sobre nossos caprichos cotidianos. Está descrevendo algo mais profundo: uma condição ontológica enraizada naquilo que ele chama de “vontade” — uma força metafísica cega, inesgotável, que pulsa em todo ser vivo como impulso de continuar, de querer, de afirmar-se no mundo. Essa vontade não é um desejo pontual por este ou aquele objeto; é a própria estrutura que nos atravessa e nos constitui. A ânsia, nesse sentido, revela uma inquietação que vai além da simples falta de algo específico — é a marca de uma existência movida por uma força que jamais encontra repouso definitivo. E o tédio de possuir? Longe de ser mero aborrecimento passageiro, surge como consequência inevitável: quando a vontade se satisfaz, depara-se apenas com um vazio de sentido, pois a posse de objetos transitórios jamais interrompe a cadeia do querer. Pensar essa dialética exige levar a sério a hipótese schopenhaueriana: ela nos ajuda a compreender por que a satisfação de desejos concretos raramente aponta para um bem último e por que a vida prática insiste em retornar aos mesmos ciclos de necessidade e enfado.
Essa estrutura ganha contornos clínicos em Freud, que — embora não compartilhe da mesma metafísica — oferece uma anatomia psicológica precisa do fenômeno. Em linguagem freudiana, podemos pensar a vontade schopenhaueriana como a dinâmica das pulsões: forças parciais que buscam descarga e se organizam em torno de objetos ao longo do desenvolvimento. A ânsia de ter corresponde à tensão pulsional acumulada que pressiona o aparelho psíquico em busca de investimento; a satisfação obtida, por sua vez, provoca apenas uma descarga temporária que, pela própria natureza do retorno pulsional e pela configuração do ego e do superego, logo reabre o circuito. Freud introduz aqui a noção crucial de repetição: não buscamos apenas prazer imediato, mas tendemos a repetir modalidades de relação que remetem a um passado pulsional — o que explica por que alcançar o objeto desejado não costuma apagar o modo como o desejo foi originalmente estruturado. A clínica freudiana revela ainda que objetos reais, fantasias e memórias se entrelaçam para produzir satisfações parciais, transferências e novas faltas. Portanto, a tarefa analítica não consiste em eliminar o desejo, mas em decifrá-lo, historicizá-lo e auxiliar o sujeito a assumir sua própria trajetória de investimento, perda e reparação.
Lacan radicaliza essa leitura ao situar a falta no centro mesmo do conceito de desejo. Para ele, desejamos sempre já como desejo do Outro: o desejo surge numa cadeia simbólica onde nos constituímos como efeitos de linguagem e da falta que a própria linguagem é incapaz de preencher. O famoso “objeto a” (objeto pequeno a) não é um objeto real que possa nos satisfazer plenamente, mas a causa do desejo — aquilo que, por sua ausência constitutiva, mantém o desejo em permanente movimento. Quando finalmente alcançamos o objeto que julgávamos promissor, o encontro desvela uma falência: o real do objeto não corresponde à matriz fantasmática que o sustentava. O tédio de possuir surge, então, como efeito dessa decantação entre imagem e simbolização — a coisa percebida revela as lacunas do imaginário e da inscrição simbólica, reativando inevitavelmente o desejo. No campo do tratamento, essa formulação convida ao trabalho com a fala, os deslizes, a articulação entre simbólico e imaginário, pois é justamente aí que se revela a lógica de repetição e a impossibilidade do preenchimento absoluto. Em vez de prometer alívio definitivo, a análise oferece um espaço onde o sujeito pode reconhecer sua própria falta e, a partir dela, reconfigurar sua relação com o desejo.
Winnicott traz para a conversa um enfoque relacional e fenomenológico, mostrando como desejo e posse são vivenciados desde a experiência mais precoce. Para ele, nossa capacidade de investir em objetos depende fundamentalmente do “holding” — da capacidade do ambiente suficientemente bom de sustentar, regular e responder às necessidades do bebê. A ilusão criativa, que permite ao bebê sentir-se produtor do objeto de satisfação, é condição para a emergência de um self verdadeiro e da capacidade de brincar e imaginar. Quando esse ambiente falha — por carência, imprevisibilidade ou intrusão —, instala-se uma economia de consumo: o sujeito passa a procurar incessantemente objetos externos como tentativas de reparo, buscando preencher um vazio que é, na verdade, registro de um cuidado que não foi recebido. O tédio de possuir, nesse enquadramento, confirma que o objeto nunca é suficientemente “sustentador” — ele não restaura o vínculo matricial que tornaria possível a criação de sentido. Winnicott desloca assim o problema do plano meramente intrapsíquico para o intersubjetivo: o tratamento visa reconstruir condições para experiências de transição, para o brincar e para transformar objetos em suportes de significado, não em meros consumíveis.
Ferenczi complementa essa perspectiva com sua sensibilidade clínica ao trauma, enfatizando que a ânsia por objetos — materiais, afetivos ou simbólicos — pode emergir de experiências traumáticas e de uma comunicação afetiva profundamente danificada. Suas reflexões sobre a “confusão de línguas” entre adultos e crianças e sobre o desamparo precoce iluminam por que o desejo pode assumir características de fome inesgotável: quando as modalidades de troca afetiva foram invasivas, incongruentes ou ausentes, permanecemos em busca de reparos externos que simplesmente não se encontram. O objeto procurado opera então como tentativa de cura, mas a frustração é inevitável porque a ferida de fundo é relacional e permanece simbolicamente indizível sem intervenções que permitam sua simbolização e integração. Na clínica ferencziana, importa trabalhar com sensibilidade ao trauma, reconhecer as formas internas de desamparo e criar uma relação terapêutica que traduza em linguagem e experiência aquilo que antes era apenas pulsão e desamparo — reduzindo, gradualmente, a compulsão por conquistas substitutivas que terminam em tédio.
Bion, por fim, oferece um aparato teórico que conecta capacidade de pensar à sustentação afetiva. Sua noção de função alfa, elementos-beta e contenção (container-contained) explicita por que a posse de objetos sem processo de pensamento conduz ao esvaziamento. Elementos-beta são sensações e experiências brutas que, sem serem transformadas pela função alfa do cuidador ou analista em matéria pensável, retornam como impulsos agitados e intrusivos. A ânsia de ter pode ser lida, então, como expressão de uma mente em déficit de transformação alfa — uma busca por descarga, por redução imediata de angústia. Quando o objeto chega sem ter sido metabolizado pela rede de significações do sujeito, perde rapidamente seu valor experiencial; o tédio surge como colapso da capacidade de sonhar, de reverie, de elaborar. Bion nos lembra que o trabalho analítico é também trabalho de pensamento: criar condições para que experiências sejam pensadas e elaboradas transforma a relação com o desejo, dilata a tolerância à ausência e converte o vazio em espaço fecundo para elaboração simbólica.
Ao reunir essas perspectivas, constatamos que Schopenhauer e a psicanálise compartilham uma intuição fundamental: o objeto jamais encerra a promessa de completude — o desejo é, em sua essência, incompleto. Divergem, porém, quanto à resposta ética e terapêutica. Schopenhauer propõe um caminho de suspensão ou renúncia da vontade como saída filosófica para o sofrimento; a tradição psicanalítica, em suas variantes, propõe a transformação da relação com o desejo: simbolizar, historicizar, reconstruir vínculos, desenvolver capacidade de pensar e de brincar. Clinicamente, isso se traduz em práticas que visam não a eliminação do impulso, mas sua inscrição em narrativas possíveis, em relações que contenham e façam sentido, e em formas de subjetivação que permitam viver a falta sem ser por ela definido. Em termos práticos, a intervenção analítica trabalha para que a ânsia deixe de ser apenas motor de consumo e a posse deixe de dissolver-se em tédio — não prometendo satisfação total, mas uma relação menos tirânica e mais criativa com a falta que nos constitui.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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