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Finados: o trabalho psíquico de habitar a ausência



O Dia de Finados oferece, à luz da psicanálise, uma oportunidade singular de pensar a relação do sujeito com a perda e a morte. A morte não é apenas um evento biológico, mas uma experiência psíquica fundante, que confronta o eu com sua condição de falta e com a impossibilidade de onipotência. O que se comemora nesse dia, portanto, não é a morte em si, mas o trabalho psíquico necessário para sustentá-la simbolicamente — aquilo que Freud denominou Trauerarbeit, o “trabalho do luto”.

Em Luto e Melancolia (1917), Freud descreve o luto como um processo de desligamento libidinal: o investimento afetivo depositado no objeto perdido precisa ser retirado, pouco a pouco, para que a energia possa ser reinvestida em novos objetos. A perda, nesse sentido, não é um simples “esvaziamento”, mas um processo ativo de transformação psíquica. Quando esse trabalho falha, surge a melancolia — estado em que o sujeito se identifica com o objeto perdido, dirigindo contra si a agressividade que originalmente era destinada a ele. O luto elaborado permite reinvestimento e continuidade da vida; o não elaborado aprisiona o sujeito na identificação mortífera com o perdido.

Melanie Klein amplia a concepção freudiana ao deslocar o luto para o centro da vida psíquica. Em Luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos (1940), ela sustenta que todo processo de elaboração implica a reatualização da posição depressiva. A experiência do luto não se restringe à perda concreta de um ente querido, mas retoma a perda primordial do objeto interno bom, ameaçado pela destrutividade inconsciente. O trabalho de luto consiste, então, em reparar internamente o objeto amado e destruído pela fantasia, restaurando a confiança na continuidade da vida psíquica. Assim, o luto adulto reedita a tarefa infantil de reconhecer a ambivalência e de integrar amor e ódio na mesma figura do objeto.

Bion aprofunda essa compreensão ao pensar o luto como condição da capacidade de pensar. O pensamento nasce do confronto com a ausência: quando o objeto não está presente para satisfazer, o aparelho psíquico é convocado a simbolizar. A função continente da mãe — e, por analogia, do analista — é aquilo que permite à experiência dolorosa tornar-se pensável. A ausência que encontra continência transforma-se em pensamento; a ausência que não encontra, em angústia sem nome. O ritual de Finados, nessa perspectiva, pode ser compreendido como uma forma social de contenção simbólica: um dispositivo cultural que oferece moldura ao caos emocional, permitindo que a dor da perda seja metabolizada psíquica e coletivamente.

Winnicott, por sua vez, introduz uma dimensão intermediária entre realidade interna e externa: o espaço transicional. É nele que se dá o brincar, a criação e a experiência religiosa. O gesto simbólico de visitar um túmulo, acender uma vela ou pronunciar um nome perdido pertence a essa zona intermediária, onde a realidade objetiva da morte encontra a realidade subjetiva do vínculo. Esses gestos não negam a perda, mas a sustentam num campo potencial, possibilitando que o sujeito permaneça criativo diante da ausência. O objeto transicional — e, por extensão, o ritual — é o que permite que a perda não se converta em aniquilamento.

Lacan retoma o tema da perda sob outra chave: a do significante. O luto, em sua estrutura simbólica, é a operação pela qual o sujeito reinscreve a ausência do objeto no campo da linguagem. Nomear o morto é o que o insere na ordem simbólica, retirando-o do domínio do real impossível. Por isso, quando o luto não pode ser simbolizado — quando o discurso social nega a dor ou quando o sujeito é interditado de nomear sua perda —, a ausência retorna como sintoma, como resto não simbolizado. O Dia de Finados, nessa ótica, funciona como um dispositivo de reinscrição simbólica coletiva: um tempo e um espaço em que a perda é reconhecida e nomeada, restaurando o laço social rompido pela morte.

André Green, com sua formulação sobre o complexo da mãe morta (1983), radicaliza a questão do luto ao mostrá-lo não apenas como resposta à morte real, mas como efeito de uma perda psíquica precoce. A “mãe morta” é aquela que, embora viva, retira seu investimento libidinal, deixando o filho diante de uma presença esvaziada. Essa perda do olhar e do desejo funda um vazio que pode marcar o sujeito com uma “vida em suspenso”, uma incapacidade de investir. O luto, aqui, não é pela morte concreta, mas pela perda do investimento que dava sentido ao mundo interno. Em muitos lutos adultos, é essa ferida primária que se reatualiza — e que, na análise, pode encontrar possibilidade de representação.

Assim, pensar o Dia de Finados à luz da psicanálise é compreender que o luto não é um episódio, mas uma estrutura fundamental do ser humano. Lidar com a morte é lidar com o limite do próprio narcisismo — reconhecer que o objeto amado é finito e que o amor verdadeiro só existe na aceitação dessa finitude. O luto é, portanto, o ponto em que o amor e a morte se cruzam: amar é perder, e perder é continuar amando de outra forma.

O trabalho do luto é o trabalho da vida. Ele não visa apagar a dor, mas transformá-la em memória e criação. Finados, nesse sentido, é o exercício coletivo de simbolizar o irrepresentável. É a tentativa de dar lugar ao que falta, de transformar o silêncio em palavra, e a ausência em presença psíquica. Aquele que pode lembrar sem sucumbir, chorar sem se perder, e amar sem negar a perda, é aquele que realizou, em si, o verdadeiro trabalho de habitar a ausência.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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