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Natal, afeto e cuidado

            


Quando criança, nessa época do ano, eu procurava galhos secos para montar uma árvore de Natal. A casa onde cresci tinha um quintal grande, pelo menos aos meus olhos de menino. Naquele quintal, eu me divertia bastante! Havia um jambeiro, uma jaqueira, um abacateiro, uma mangueira e outras árvores frutíferas. Na frente da casa, havia um belo pinheiro. Quando encontrei o galho que considerei ideal, fui até o algodoeiro para colar algodão nele. Em seguida, peguei algumas caixas de fósforos vazias, as embrulhei como presentinhos e as pendurei na árvore. Minha expectativa era de que, ao chegar do trabalho, minha mãe se deparasse com minha obra de arte natalina. Na véspera de Natal, a casa ficava impregnada com o doce aroma das frutas dispostas em uma fruteira bem no centro da mesa. Como esquecer os panetones e aqueles bolinhos de bacalhau que minha saudosa avó preparava para comermos após a cantata de Natal?


Tenho certeza de que, assim como eu, você também possui suas memórias dessa data — algumas agradáveis, outras nem tanto. O Natal, segundo a tradição cristã, celebra o nascimento de Jesus de Nazaré, que veio ao mundo na periferia de Belém, em um curral. Isso sempre me lembra uma frase de Leonardo Boff: "Todo menino quer ser homem. Todo homem quer ser rei. Todo rei quer ser Deus. Só Deus quis ser menino". Essa frase tem uma beleza poética que me remete ao que Rubem Alves disse certa vez: "Fora da beleza não há salvação." O Natal traz essa beleza através dos enfeites, das luzes, das músicas e de sua mensagem. Na cristandade, é um período que significa renovação e renascimento, ou o nascimento de Jesus nos corações. O menino pobre simboliza a misericórdia e a graça de Emanuel, que significa "Deus conosco".


Quando você pensa no Natal, o que lhe vem à mente? Para você, o que significa o Natal? Qual seu sentido? Um tempo de celebração, paz, ação de graças, reunião familiar ou uma festa triste? É curioso como, para cada pessoa, essa época do ano pode ter significados diversos, sem que isso implique em erro ao conferir tal significado ao Natal. Será que, nesta época do ano, o chamado espírito natalino é tão afetuoso porque essa é uma linguagem primitiva que nossa "criança interior" compreende? Afinal, o Natal nos apresenta uma linguagem feita de gestos afetuosos e de cuidado, comum nesse período do ano, capaz de criar um ambiente acolhedor.


Alguém já disse que "A melhor mensagem de Natal é aquela que sai em silêncio de nossos corações e aquece com ternura os corações daqueles que nos acompanham na caminhada pela vida." O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi refere-se à "língua da paixão" como relativa à onipotência narcísica do adulto, e à "língua da ternura" como pertencente à ilusão de onipotência lúdica infantil. A língua da ternura, que é a da criança, é a língua do lúdico. Para Ferenczi, a relação adulto-criança é marcada por uma confusão decorrente de uma diferença de línguas, de forma que muitas vezes um não entende o outro. Ele aborda essa "confusão de línguas" em um polêmico texto intitulado "Confusão de línguas entre os adultos e a criança: a linguagem da ternura e da paixão", de 1933.


Ferenczi, a partir da teoria do trauma, apresenta a hospitalidade como um dos princípios fundamentais para uma ética do cuidado na prática psicanalítica. A hospitalidade na clínica possibilita reconhecer o analisando como um estrangeiro que possui uma língua estranha ao analista. Assim, é possível evitar, na situação analítica, a reprodução do desmentido; ou seja, a língua do analisando não é desautorizada por outra que pretenda se impor como a legítima enunciadora da verdade. Se o psicanalista ocupa o papel de cuidador, é preciso estar disponível para deixar o outro ser como é e como pode ser, seja qual for a possibilidade de ser que se apresente em um dado momento da relação no processo psicanalítico. Para permitir que o outro seja, é necessário estar preparado para reconhecer qual é a possibilidade de ser do momento e acompanhá-lo enquanto essa possibilidade perdurar, por mais estreita que seja.


Portanto, que os aprendizados adquiridos neste ano que termina possam culminar em melhorias necessárias no ano que inicia; que possamos renascer em autocuidado e amor próprio, mas que não nos falte a maturidade para gerenciar nossas emoções. Tenhamos em mente que, se de fato desejamos um ano com resultados diferentes, é necessário mudar nossas ações. Sigamos, então, para o novo ano, construindo um ambiente mais acolhedor, respeitando as diferenças que nos cercam. Lembre-se de que cada pessoa é única. No ano que se aproxima, não se compare com ninguém, pois você é singular. A questão não é ser o melhor de todos, mas sim o melhor que você pode ser.


Daniel Lima

Psicanalista

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