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O estranho familiar: bebês reborn e psicodinâmicas do inconsciente.

 


A popularização dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos com detalhes minuciosos — provoca curiosidade, admiração e inquietação. Mais do que simples objetos de coleção ou brinquedos, esses artefatos têm ganhado um status simbólico que atravessa o lúdico e se aproxima do terapêutico. A partir de uma perspectiva psicanalítica, podemos interpretar esse fenômeno como expressão de fantasias inconscientes ligadas ao desejo, à perda, à reparação e à constituição do eu.

Sigmund Freud oferece uma chave interessante ao abordar o conceito de “Unheimlich”, traduzido como “o estranho familiar” ou “o inquietante”. Os bebês reborn ocupam exatamente essa zona ambígua: enquanto reproduzem a forma de um bebê real, não são bebês; são bonecas, mas não se deixam reduzir à condição de brinquedo. Há algo de perturbador nesse limiar entre o animado e o inanimado, entre o vivente e a pura representação. É como se tocassem silenciosamente em um retorno do recalcado: o desejo de fazer reviver o que foi perdido, ou de deter o tempo em uma cena que não deveria acabar.

Muitos adultos que se aproximam desses bebês não o fazem por capricho, mas tentam elaborar vivências dolorosas: a infertilidade, a morte de um filho, ou o vazio deixado por experiências precocemente interrompidas. Nesses casos, o reborn opera como um objeto transicional — no sentido winnicottiano —, funcionando como um elo entre realidade e fantasia, como um suporte simbólico para a reorganização psíquica diante de traumas ou carências afetivas. Diferente do objeto transicional infantil, que é provisório, o reborn corre o risco de cristalizar-se, tornando-se um substituto fixo e idealizado daquilo que não pôde ser vivido ou reparado.

Sob a perspectiva de Melanie Klein, a relação com os bebês reborn pode ser vista à luz da posição depressiva. Nesse sentido, a pessoa tenta reparar internamente os danos causados às figuras internas (e aos vínculos reais) por meio de gestos simbólicos de cuidado, dedicação e afeto. A boneca torna-se depositária de conteúdos reparadores, permitindo à pessoa exercer um tipo de maternagem frustrada na vida real. Entretanto, se essa reparação permanecer apenas no plano imaginário, sem abertura para o encontro com o outro real, pode promover uma defesa contra a angústia ao invés de sua elaboração.

As “maternidades de bonecas”, onde partos são simulados e as bonecas recebem certidões de nascimento, nos levam à reflexão sobre a performatividade do desejo. O ato de “dar à luz” uma boneca não é apenas encenação — é uma dramatização de fantasias inconscientes que tocam no narcisismo, no ideal do eu e no desejo de completude. André Green nos ajuda a pensar como essa mise-en-scène (encenação) opera diante de um objeto morto-vivo: aquele que, embora investido, não responde; um objeto sem alteridade. O risco é recusar a falta e a alteridade que o outro humano inevitavelmente encarna.

É importante destacar que essas práticas não devem ser automaticamente patologizadas. Em muitos casos, os reborn são fonte de consolo, afeto e reorganização psíquica. No entanto, a psicanálise nos convida a escutar o que se diz por trás do aparente: que função essa boneca exerce no psiquismo de quem a adota? Serve ao luto, à substituição, à defesa contra a angústia ou à criação simbólica de novas possibilidades de vínculo?

Os bebês reborn revelam, em sua estranha familiaridade, uma verdade incômoda: o humano está sempre às voltas com sua incompletude, tentando nomear, simbolizar e dar forma ao que falta. Se, por um lado, essas bonecas nos confrontam com o artificial, por outro, talvez estejam dizendo algo verdadeiro sobre nossas dores, desejos e nossa incessante tentativa de fazer viver o que, por algum motivo, se perdeu.

 

Daniel Lima,

Psicanalista

@daniellima.pe

Comentários

  1. No meu caso, seria por substituição, a defesa contra a angústia e a criação simbólica de um vínculo. Se eu tivesse como comprar um daqueles bonecos hiperrealistas japoneses, por exemplo, eu compraria. Não teria praticamente a função sexual..rs.. Já seria muito preenchedor pra mim conversar com ele na cama, fazer cafuné nos cabelos dele, abraçar ele a noite toda e dar o meu beijo de bom dia mal humorado..rs..

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