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Espelho, espelho meu: A angustiante ditadura da beleza.

 

“O essencial é invisível aos olhos.”

(Antoine de Saint-Exupéry)

Recentemente, fomos impactados pela triste notícia da morte da digital influencer Liliane Amorim, de 26 anos, devido a complicações decorrentes de uma cirurgia de lipoaspiração. Vivemos em uma sociedade cada vez mais regida pela mídia, que por sua vez dita padrões de beleza quase inalcançáveis. Espera-se a manutenção de um corpo esguio, cabelos deslumbrantes, pele impecável, entre outras exigências. Neste contexto, tudo parece valer na incansável busca pela perfeição, surgindo assim o conceito de "ditadura da beleza". A publicidade exerce um papel fundamental na indústria cultural, influenciando o comportamento do consumidor e criando ideais de beleza. Dessa maneira, o corpo é exibido como uma realidade tangível, bastando que as mulheres sigam as sugestões mágicas prometidas pela mídia para alcançar o corpo "perfeito".

A célebre frase atribuída à rainha má da fábula "Branca de Neve": “Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?”, nos revela muito sobre nossa relação com o espelho. Longe de ser inofensivo, este conto de fadas carrega um teor moral e doutrinário. O espelho, neste contexto, é uma instituição social de poder que promove falsos modelos, criando um imaginário excludente, opressor e ilusório, que legitima violências psicológicas e físicas. O espelho do conto é vivo, falante e aparentemente sincero. Ele é quem detém a ideia do belo, dando o veredicto: “és tu a mulher mais bela”. Contudo, essa sinceridade é ilusória, baseando-se na superficialidade de um estereótipo que ignora a pluralidade como um caminho válido para apreciar a beleza.

A estética, ramo da filosofia, dedica-se ao estudo do belo ou da beleza, do sensível e de suas implicações na criação artística. Para Kant, o belo era algo subjetivo, característico de um indivíduo. Hegel, por outro lado, descrevia o belo e a beleza como conceitos que evoluem com o tempo. Observando as transformações de 1910 a 2000, percebemos isso claramente: em 1910, a silhueta fina era a tendência; na década de 1920, as melindrosas adotavam cabelos curtos e desfrutavam do jazz; os anos 1930 idolatravam mulheres sereia, com vestidos justos; em 1940, as rainhas do cinema eram o padrão de firmeza e elegância; na década de 1950, valorizavam-se as curvas; nos anos 1960, surgem as meninas-graveto; a década de 1970 evidencia curvas atléticas; em 1980, as supermodelos altas e impassíveis predominavam; nos anos 1990, a epidemia de anorexia se dissemina com a valorização da magreza extrema. Já nos anos 2000, as saradas, bronzeadas e com barriga tanquinho tornaram-se padrão. O mercado de beleza do Brasil é um dos que mais cresce mundialmente.

Nessa busca pelo corpo ideal, muitos se rendem a artifícios diversos, confiando em pílulas emagrecedoras, dietas extravagantes, procedimentos cirúrgicos e cosméticos, entre outros “caminhos” para atingir o padrão almejado. Além da luta contra o peso e características físicas indesejáveis, há também a batalha contra o tempo, pois a beleza, com frequência, é associada à juventude. Isso reforça a ideia de que o envelhecimento deve ser evitado, iniciando uma luta inglória contra as marcas do tempo. Essa busca frenética por um corpo considerado belo pode, lamentavelmente, acarretar sérios problemas de saúde física e mental, como anorexia, bulimia, depressão, estresse, dificuldades financeiras, problemas de autoestima e sentimento de inadequação.

Portanto, a imposição social de um padrão único tem trazido consequências nefastas para as pessoas e sua saúde. A necessidade de aceitação e de pertencimento alimenta esse fenômeno, segregando pessoas entre as que se encaixam e as que não. Contudo, é crucial recordar que, mais importante do que um padrão de beleza, estão a autoestima, a saúde e o bem-estar mental, que devem sempre ser priorizados. Afinal, um corpo bonito é aquele que abriga uma pessoa feliz.


Daniel Lima
Psicanalista

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