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O labirinto digital da alma infantil: uma análise psicanalítica da exposição e exploração

 

A contundente denúncia de Felca sobre a adultização e sexualização de crianças e adolescentes no ambiente digital, expondo a monetização predatória e o funcionamento perverso do "Algoritmo P", ressoa com inquietante profundidade nas teorias psicanalíticas. Não se trata apenas de um alerta sobre crimes e abusos externos, mas de uma revelação dolorosa sobre a fratura de dinâmicas fundamentais para o desenvolvimento psíquico saudável. A análise desses fenômenos sob a ótica de Melanie Klein, Donald Winnicott, Thomas Ogden e Antonino Ferro não apenas desvela os complexos mecanismos inconscientes em jogo, mas também oferece uma compreensão mais profunda dos danos psíquicos infligidos, que se estendem muito além da superfície da mera exposição.

Melanie Klein e a fratura das relações de objeto iniciais

Sob a lente da psicanálise kleiniana, a compulsão desenfreada dos pais pela monetização e engajamento nas redes sociais emerge como uma identificação projetiva patológica. Nesse mecanismo inconsciente, anseios, vazios e feridas narcísicas dos próprios adultos – sejam eles financeiros, de reconhecimento social ou de validação – são projetados de forma maciça e invasiva sobre os filhos. As crianças, nesse cenário distorcido, perdem sua individualidade e integridade, sendo transformadas em objetos parciais; não são vistas como seres integrais com suas próprias necessidades e subjetividades, mas como extensões ou meros instrumentos para a gratificação dos desejos parentais. Consequentemente, são forçadas a introjetar um objeto “mau” – uma figura parental que, paradoxalmente, deveria ser fonte de amor e segurança, mas que age de forma exploratória e intrusiva, falhando em percebê-las em sua totalidade.
Essa exposição precoce e sexualização, dolorosamente exemplificada nos casos de Bel para Meninas, Camilinha e Caroline Dreher, lança essas crianças em uma posição esquizo-paranoide exacerbada e prolongada. A distinção entre o “bom” (o amor, o cuidado, a proteção parental) e o “mau” (a exploração, o abuso, a violação de fronteiras) torna-se profundamente confusa e obscura, gerando uma fragmentação avassaladora do ego infantil. Tal confusão impede a integração necessária para que a criança possa, futuramente, alcançar a posição depressiva saudável, onde o amor e o ódio, o bom e o mau, podem ser integrados numa visão mais realista de si e dos outros. A angústia persecutória é inerente a essa experiência, pois o mundo externo, mediado pelo “Algoritmo P” — que ativamente direciona conteúdo de crianças em poses sugestivas para indivíduos com interesses pedófilos e facilita a comunicação de abusadores —, transforma-se em um local de ameaça e invasão constante, repleto de “objetos maus” que buscam explorar e desintegrar. O trauma relatado por Bel, por exemplo, é uma manifestação direta da introjeção de uma experiência persecutória e da incapacidade de integrar essa vivência dolorosa, que permanece como um fragmento intrusivo em sua psique.

Donald Winnicott e a ausência do “ambiente facilitador”

Para Donald Winnicott, o desenvolvimento psíquico saudável de um indivíduo depende intrinsecamente da provisão de um ambiente facilitador ou “holding environment” por uma “mãe suficientemente boa”. Este ambiente, idealmente, oferece segurança, contenção emocional e um espaço confiável para a criança ser, expressar-se e desenvolver-se autenticamente, absorvendo e processando suas angústias. O cenário descrito por Felca, no entanto, é a antítese radical desse ambiente vital. Os pais, ao invés de protegerem e conterem as angústias e vulnerabilidades inerentes ao desenvolvimento de seus filhos, ativamente os expõem ao mundo digital de forma predatória, falhando miseravelmente em sua função de “holding”. Não se trata apenas de uma “mãe não suficientemente boa”, mas de um ambiente que ativamente desestrutura a base de segurança, confiança e intimidade necessárias para o crescimento psíquico.
Diante dessa falha fundamental em ser contida, protegida e aceita em sua autenticidade, a criança é forçada a desenvolver um falso self hipertrofiado. Essa estrutura rígida e performática não é apenas uma máscara; é uma organização defensiva que sufoca a espontaneidade e a genuína expressão de si, criada para atender às demandas externas de performance, beleza e sexualidade adulta impostas pelos pais e pela audiência online. O verdadeiro self, a fonte de criatividade, vitalidade e capacidade de estar só, é sistematicamente sufocado, negado e silenciado em favor da imagem que precisa ser vendida e do engajamento que precisa ser gerado. Casos como o de Camilinha, que passou por procedimentos estéticos precoces (como implante de silicone) filmados para o público, ilustram dolorosamente como o corpo e a identidade são instrumentalizados, moldados e, em última instância, desfigurados para servir a esse falso self performático e à demanda do mercado digital. O espaço digital, que para Winnicott poderia ser um espaço transicional propício para o brincar, a criatividade e a exploração segura da realidade interna e externa, transforma-se em um palco de espetáculo perverso, onde a brincadeira autêntica é substituída por performances roteirizadas, a espontaneidade por poses adultas, e a privacidade do desenvolvimento por uma exposição incessante, levando a uma profunda desconexão com o eu genuíno e a um severo impacto na formação de uma identidade coesa e saudável.

Thomas Ogden e o campo analítico não simbolizável

Thomas Ogden, expandindo as ideias de Bion e Klein, enfatiza a crucial importância da capacidade de “reverie” – a função de sonhar e metabolizar as experiências emocionais brutas do paciente (e, por extensão, do ambiente parental) – para receber e transformar os elementos beta (experiências sensoriais e emocionais não pensadas, não simbolizadas) em elementos alfa (experiências que podem ser pensadas, sonhadas e, portanto, simbolizadas). No contexto da adultização e sexualização infantil online, os pais exibem uma profunda e alarmante falha na capacidade de “reverie” em relação aos seus filhos. Eles demonstram uma incapacidade de sentir, pensar ou simbolizar as angústias, os medos, as necessidades genuínas de desenvolvimento das crianças e a intrusão psíquica que estão sofrendo; em vez disso, atuam suas próprias patologias, vazios e desejos no espaço digital, usando as crianças como meros veículos de projeção e exploração.
O que se estabelece é um campo analítico distorcido e, em essência, perverso, onde a intersubjetividade e a capacidade de pensar juntos sobre as experiências emocionais são brutalmente negadas. A criança é reduzida a um objeto sem subjetividade, vivenciando experiências que permanecem como elementos beta não transformados – traumas, confusão de limites, invasão, sexualização precoce – incapazes de serem pensados, compreendidos ou, sequer, sentido em sua plenitude. Isso pode levar a uma rigidez defensiva extrema, aproximando-se da posição autístico-contígua, uma defesa psíquica desesperada contra o caos e a dor. Essa posição é caracterizada por uma dependência em sensações concretas, padrões repetitivos (como o scrolling interminável ou a performance constante) e uma fuga da experiência emocional profunda, tudo para evitar o colapso psíquico e a desintegração. O “Algoritmo P”, ao continuamente fornecer estímulos e demandas de performance, não apenas reforça essa necessidade de permanecer na superfície do concreto, mas também impede ativamente qualquer chance de introspecção ou processamento emocional profundo, perpetuando o ciclo de não simbolização e a cronificação do trauma.

Antonino Ferro e a falha na narrativização e sonhabilidade

Antonino Ferro, com sua ênfase na narrativa e na função transformadora do sonhar na sessão analítica, ilumina como a exposição digital precoce e a adultização impedem a construção de uma narrativa pessoal coesa e significativa para essas crianças. Suas vidas não são construídas a partir de suas próprias experiências e reflexões, mas são contadas e recontadas por outros (pais, seguidores, algoritmos) de uma forma que serve a interesses externos e muitas vezes predatórios. Isso impede que a criança seja a autora de sua própria história interna ou que a compreenda em profundidade. A capacidade de sonhar – no sentido bioniano da função psíquica fundamental de processar a experiência emocional bruta e torná-la simbólica e pensável – é gravemente comprometida. Os elementos beta do trauma, da confusão de identidade e das violações de fronteiras são transmitidos de forma bruta, sem a possibilidade de serem digeridos, metabolizados pela função alfa e transformados em narrativas que lhes deem sentido.
O ambiente digital, com seu fluxo incessante de estímulos não pensados, a pressão implacável por performance, e a busca por gratificação e engajamento instantâneos, impede a pausa necessária para que a função alfa opere e para que a criança possa internalizar e dar sentido às suas experiências. O resultado é uma grave perturbação na capacidade de criar coerência interna e de integrar as diversas facetas da própria experiência em uma história de vida significativa. As vidas de Bel, Camilinha e Caroline se tornam narrativas truncadas, cheias de lacunas, fragmentos e traumas não simbolizados, o que dificulta imensamente a coesão do self e a capacidade de se relacionar de forma autêntica e saudável no futuro. A falta de “sonhabilidade” – a capacidade de metabolizar a experiência para que se torne pensável e narrável – contribui diretamente para o trauma e a duradoura cicatriz psicológica, deixando essas crianças com memórias brutas, intrusivas e não processadas em vez de uma história de vida integrada e compreendida, comprometendo sua capacidade de se reconhecer e de se apresentar ao mundo de forma genuína.

Conclusão

O vídeo de Felca, à luz dessas profundas teorias psicanalíticas, transcende a mera denúncia de crime e exposição, revelando uma profunda e sistêmica falha no arcabouço psíquico familiar e social que está se estabelecendo e se normalizando na era digital. A busca desenfreada por monetização e validação online destrói os pilares fundamentais do desenvolvimento infantil: a capacidade de internalizar bons objetos e construir um mundo interno seguro, de se relacionar com um ambiente suficientemente bom que promova a autenticidade, de simbolizar experiências para integrá-las em uma psique coesa, e de construir uma narrativa pessoal que dê sentido à sua própria existência. O “Algoritmo P” e a cultura de exposição online tornam-se um reflexo perverso e amplificado de uma sociedade que projeta suas próprias patologias e vazios no digital, invadindo, explorando e desintegrando a psique das crianças de maneira devastadora. A denúncia de Felca não é apenas um chamado à ação legal para conter abusos, mas um grito urgente por uma “reverie” coletiva — uma pausa reflexiva e uma capacidade de sonhar e pensar sobre o que estamos fazendo às nossas crianças —, por um ambiente digital e familiar que possa realmente conter, proteger e permitir que elas sonhem, se desenvolvam e construam um selfverdadeiro e integral, longe da tirania dos pixels e da exploração.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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