Hoje, no grupo de estudos coordenado por Júlio César Nascimento (@juliocesarnascimentopsicanalis), surgiu um interessante debate sobre a regulamentação da psicanálise, o que me motivou a registrar algumas reflexões sobre o tema.
O debate em torno da sugestão legislativa que propõe tornar a psicoterapia exclusiva a psicólogos e médicos psiquiatras ganhou destaque nesta terça-feira, 5 de agosto de 2025, na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, por meio das Sugestões Legislativas SUG 1/2024 (que defende a exclusividade para psicólogos e psiquiatras) e SUG 40/2019 (que propõe a prática privativa a psicólogos). A audiência pública, conduzida pela relatora, senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), contou com a participação de diversos especialistas, conselhos e associações técnicas, como CFP, CFM, CNS, ABPBE, entre outros.
Segundo o Conselho Federal de Psicologia, a proposta visa garantir que a psicoterapia seja exercida apenas por profissionais com formação adequada, estágio supervisionado e fiscalização pelo CRP ou CRM. O CFP apresentou parecer técnico (Parecer CFP 01/2025) defendendo essa exclusividade como forma de proteger a população de atendimentos inadequados ou arriscados. Dados recentes indicam um crescimento expressivo na demanda por sessões de psicoterapia e consultas psiquiátricas, reforçando, segundo essa perspectiva, a necessidade de regulação.
Como psicanalista, que há anos sustenta uma escuta clínica orientada pelo inconsciente e comprometida com a ética do cuidado, observo com apreensão os rumos desse debate sobre a regulamentação da psicoterapia no Brasil. A proposta de restringir sua prática exclusivamente a psicólogos e médicos pode até nascer de uma intenção legítima — proteger a população do risco de práticas irresponsáveis e malformadas —, mas, a meu ver, envolve um perigo maior: tentar enquadrar a diversidade do campo clínico em uma lógica única, institucional e normatizadora, que ignora a singularidade de outras práticas, especialmente a psicanálise.
A psicanálise não é, nem nunca foi, uma especialização da psicologia ou da medicina. Trata-se de um campo autônomo, com fundamentos teóricos, éticos e clínicos próprios, cuja formação exige um extenso percurso de análise pessoal, supervisão clínica e estudo contínuo. Não há um “canudo” que legitime o analista; o que o autoriza é uma travessia subjetiva em sua própria análise e o compromisso com uma prática que se sustenta, antes de tudo, no desejo de escutar o sofrimento humano em sua dimensão mais íntima. Isso não se coaduna com a lógica das certificações estatais ou com o crivo burocrático dos conselhos profissionais.
Não se trata de desprezar a importância da formação sólida, nem de negar os riscos das formações apressadas e do charlatanismo que circula por aí. Ao contrário, sou absolutamente favorável ao rigor ético e técnico — mas um rigor que nasce de dentro das próprias instituições formadoras, e não de um modelo único de validação oficial. A liberdade da psicanálise jamais foi sinônimo de permissividade: formar-se analista exige tempo, disponibilidade psíquica e um compromisso que se renova a cada escuta.
Restringir a psicoterapia a psicólogos e médicos é desconsiderar o fato de que há psicanalistas sérios — filósofos, educadores, advogados, artistas — que construíram uma escuta responsável e profunda. É ignorar também que a psicanálise sempre dialogou, historicamente, com diversos saberes: literatura, filosofia, arte, antropologia, e até tradições espirituais que abordam o sofrimento de modo não reducionista. Reduzir esse campo a um território exclusivo de conselhos profissionais significa empobrecer o pensamento e, sobretudo, a clínica.
Por isso, posiciono-me contra essa proposta de exclusividade. Ela não resolve o problema do despreparo clínico — presente, inclusive, entre profissionais regularmente inscritos — e ainda corre o risco de silenciar práticas legítimas, que têm muito a oferecer à sociedade. O que precisamos é de uma cultura de formação mais exigente e comprometida, e não de uma lógica excludente.
A psicanálise, ao longo da história, já sobreviveu a inúmeras tentativas de enquadramento. E continuará resistindo, desde que permaneça fiel à sua ética: a escuta do sujeito, a aposta no inconsciente e o respeito ao tempo singular de cada um. Regulamentar o cuidado não é o mesmo que cuidar. Minha preocupação é justamente que, ao tentar proteger, acabemos por interditar a riqueza e a pluralidade das formas possíveis de escuta e elaboração do sofrimento humano.
A psicanálise deve dialogar com seu tempo sem abrir mão de sua singularidade. Não se trata de defender um campo elitista ou hermético, mas de preservar uma prática que aposta na singularidade de cada sujeito. Por isso, liberdade sim — mas com rigor e ética, sempre.
Por fim, acredito que, para seguir viva, a psicanálise precisa dialogar com seu tempo — mas sem se submeter cegamente a ele. Deve resistir ao apelo da eficiência, da adaptação e da normalização. Como analistas, somos convocados a sustentar uma escuta que acolhe a singularidade e resiste à padronização. Para isso, é preciso manter o campo da psicanálise livre, mas não frouxo; ético, sem cair na burocracia; rigoroso, porém jamais autoritário. É essa postura, acredito, que sustenta a dignidade da nossa prática.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe
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