A oniomania, ou compulsão por compras, ilumina uma pergunta que acompanha a psicanálise desde seu nascimento: como lidamos com aquilo que nos falta? Para Freud, a vida psíquica é movida por uma estrutura simples e profunda: desejamos porque não temos, e nunca teremos tudo. O desejo nasce justamente desse intervalo entre nós e o objeto que supostamente nos completaria. Por isso, nenhum objeto oferece satisfação plena; ele sempre carrega uma promessa de preenchimento, mas também a frustração de não cumprir totalmente aquilo que imaginávamos. No caso das compras compulsivas, o item adquirido funciona como uma tentativa de “resolver” essa falta constitutiva. Mas, como Freud mostra, quando o objeto é usado para encobrir um mal-estar interno, ele se desgasta rapidamente — e o sujeito precisa comprar outro, depois outro, e assim por diante. A modernidade, com seu apelo constante ao consumo, apenas dá nova forma a uma dinâmica que, na verdade, é bem antiga no psiquismo humano.
Freud observou que certos comportamentos parecem repetir-se como se tivessem vida própria — uma dinâmica que ele chamou de compulsão à repetição. É como se o sujeito fosse levado a fazer de novo aquilo que não deu certo antes, numa espécie de ritual que gira em torno de uma mesma ferida psíquica. A oniomania encaixa-se nesse modelo: antes da compra surge tensão, angústia, sensação de vazio; a compra traz alívio; depois aparece a culpa; e logo a tensão retorna, exigindo uma nova tentativa de “conserto”. Não se trata de um problema de força de vontade ou de “falta de controle”, mas de um ciclo pulsional que insiste, porque algo não simbolizado está sendo posto em jogo. Muitas vezes, o sujeito busca na vitrine o que falta em sua história: uma sensação de segurança, reconhecimento, validação, ou até mesmo uma forma de lidar com um desamparo antigo. O objeto comprado, portanto, é menos uma coisa e mais um símbolo falho que tenta responder a um conflito emocional não resolvido.
É nesse ponto que Winnicott oferece uma chave de leitura valiosa. Para ele, os objetos têm um papel central na constituição da subjetividade, especialmente aqueles da infância que atuam como objetos transicionais — coisas que ajudam a criar uma ponte entre a vida interna e o mundo externo. O importante não é o objeto em si, mas a função psíquica que ele exerce: permitir que o indivíduo crie, imagine, e se relacione com o mundo de forma viva e singular. Quando essa experiência inicial não é suficientemente boa — quando o ambiente falha em proporcionar segurança, acolhimento e continuidade — o sujeito pode crescer com um sentimento de precariedade interna. Nesse contexto, as compras podem surgir como uma tentativa de construir artificialmente essa ponte perdida. O novo objeto, brilhante e recém-adquirido, parece oferecer por alguns instantes a sensação de estar inteiro, como se soldasse uma rachadura subjetiva. Mas essa sensação é frágil: dura pouco, e logo vem a necessidade de outro objeto para restaurá-la.
A diferença fundamental entre um objeto transicional e um objeto pseudo-transicional, como ocorre na oniomania, é que o primeiro amplia a capacidade de viver, brincar e criar; o segundo a restringe. O objeto transicional ajuda o sujeito a existir de forma mais espontânea. Já o objeto comprado compulsivamente captura o sujeito num circuito de dependência: ele não nutre a vida emocional, apenas produz um alívio passageiro. Winnicott afirmava que a saúde psíquica envolve sentir-se real, enraizado em si mesmo. Quando o espaço potencial — esse espaço entre fantasia e realidade onde o brincar acontece — se empobrece, o sujeito tenta compensá-lo com aquilo que está à mão: objetos concretos. Mas, em vez de criar significados, acumula coisas. Em vez de transformar a experiência interna, tenta anestesiá-la. O gesto criativo é substituído por um gesto compulsivo.
Nesse ponto, Freud e Winnicott dialogam profundamente. Freud nos lembra que o sintoma é a ponta visível de um conflito recalcado, de algo que insiste em retornar porque não encontrou simbolização possível. Winnicott acrescenta que, muitas vezes, essa dificuldade de simbolizar está enraizada em falhas ambientais precoces, quando o mundo não foi suficientemente acolhedor para que o sujeito pudesse integrar suas vivências. Assim, a compulsão por compras não é um exagero moderno ou uma “fraqueza”. Ela expressa uma história emocional, um modo doloroso de tentar lidar com tensões internas que não encontraram outros caminhos. O problema não está nas compras em si, mas no lugar psíquico que elas ocupam: tornam-se uma tentativa concreta de resolver aquilo que só poderia ser trabalhado no campo simbólico.
Por isso, o trabalho psicanalítico não consiste em proibir compras ou ensinar técnicas de autocontrole. A pergunta central é: o que o sujeito está tentando comprar, de fato? Que dor, falta ou angústia está sendo respondida naquele gesto aparentemente banal? A análise se transforma num espaço onde o ato compulsivo pode se tornar palavra, onde a urgência pode ser traduzida em significado. A repetição cega dá lugar a uma compreensão mais profunda da própria história emocional. É nesse movimento que o sintoma perde sua força e, aos poucos, deixa de ser a única resposta possível ao sofrimento.
Freud e Winnicott convergem, por fim, para uma ideia simples e profunda: a verdadeira liberdade não nasce do controle rígido, mas da possibilidade de se relacionar com o próprio desejo sem se tornar refém dele. Quando o sujeito consegue reconhecer a falta que o habita — e não fugir dela através de objetos — algo se abre. A falta deixa de ser ameaça e se torna condição de criação, de movimento, de vida psíquica. Nesse ponto, o ciclo compulsivo pode finalmente se desfazer, e o sujeito descobre que não precisa mais comprar para existir; pode simplesmente existir, e, a partir daí, fazer escolhas mais livres e mais vivas.
Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe

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