Pular para o conteúdo principal

Quando a dor pede acolhimento, não explicação



           Há dores que não cabem nas palavras. Não porque sejam indizíveis, mas porque, ao serem ditas, correm o risco de não serem acolhidas. E é justamente esse o drama de muitos que procuram ajuda: o medo de que, ao revelar o que sentem, sejam corrigidos, julgados ou abandonados. Na escuta clínica, especialmente sob a lente da psicanálise winnicottiana, aprendemos que há sofrimentos que não pedem interpretação imediata, mas sim presença. Pedem um outro que não se assuste com a intensidade do que retorna — um outro que permaneça.
           Donald Winnicott, psicanalista inglês que dedicou sua obra a pensar a importância do ambiente nos primeiros anos de vida, nos ensina que, quando algo falha de forma grave nesse início, o sujeito não se desenvolve em continuidade. Ele sobrevive. E sobrevive, muitas vezes, por meio de um “falso self”: um modo de existir moldado para não perturbar, para garantir a presença do outro a qualquer custo, mesmo que isso implique esconder a própria verdade emocional.
           Na clínica, esse falso self pode se manter durante anos como uma fachada aparentemente funcional. Mas basta um gesto — uma palavra, uma interpretação ou até um silêncio mal compreendido — para que aquilo que estava bem protegido comece a ruir. É aí que surgem reações desproporcionais: uma culpa esmagadora, vergonha extrema, pensamentos autodestrutivos. Não se trata de exagero. Trata-se de alguém tocado em sua ferida mais antiga, onde a ausência do cuidado se inscreveu como colapso do próprio ser.
           Para o analista, o desafio é não responder a essa dor com explicações que, por mais corretas que sejam, podem ser vividas como mais uma intrusão. É preciso, antes, sustentar. Isso quer dizer: reconhecer o sofrimento, estar ali, e oferecer um tipo de escuta que não busca corrigir, mas conter. A função analítica, nesses momentos, é restaurar algo do que faltou — um ambiente suficientemente bom, onde seja possível sentir sem o risco de desaparecer.
           Esse tipo de cuidado não é passivo. Exige sensibilidade, firmeza, e sobretudo uma ética do não abandono. Quando o paciente sente que pode expressar sua raiva, sua mágoa, sua culpa — e encontra um outro que não se desfaz —, algo começa a se transformar. A experiência de que o outro sobrevive ao seu colapso permite, lentamente, que o verdadeiro self, esse núcleo mais íntimo e criativo do ser, possa emergir.
            Mais do que curar, a psicanálise oferece ao sujeito a chance de existir de modo mais autêntico. E, para isso, é preciso que haja alguém que possa ouvir sua dor sem pressa de consertá-la. Porque há sofrimentos que não querem explicações — querem um testemunho vivo de que é possível sobreviver àquilo que, um dia, pareceu impossível de suportar. E essa presença, silenciosa e confiável, pode ser o início de uma nova forma de estar no mundo.

Daniel Lima | Psicanalista | @daniellima.pe


Comentários

Sua assinatura não pôde ser validada.
Você fez sua assinatura com sucesso.

Newsletter

Assine nossa newsletter e mantenha-se atualizado.

Postagens mais visitadas deste blog

O estranho familiar: bebês reborn e psicodinâmicas do inconsciente.

  A popularização dos bebês reborn — bonecas hiper-realistas que imitam recém-nascidos com detalhes minuciosos — provoca curiosidade, admiração e inquietação. Mais do que simples objetos de coleção ou brinquedos, esses artefatos têm ganhado um status simbólico que atravessa o lúdico e se aproxima do terapêutico. A partir de uma perspectiva psicanalítica, podemos interpretar esse fenômeno como expressão de fantasias inconscientes ligadas ao desejo, à perda, à reparação e à constituição do eu. Sigmund Freud oferece uma chave interessante ao abordar o conceito de “Unheimlich”, traduzido como “o estranho familiar” ou “o inquietante”. Os bebês reborn ocupam exatamente essa zona ambígua: enquanto reproduzem a forma de um bebê real, não são bebês; são bonecas, mas não se deixam reduzir à condição de brinquedo. Há algo de perturbador nesse limiar entre o animado e o inanimado, entre o vivente e a pura representação. É como se tocassem silenciosamente em um retorno do recalcado: o desejo de...

A “tinderização” das relações: o que os apps de encontro nos dizem sobre amar hoje.

    Você já parou para pensar no que o Tinder — e outros aplicativos de relacionamento — revelam sobre como nos relacionamos hoje? Muito além de uma ferramenta para marcar encontros, essas plataformas escancaram algo mais profundo: a forma como o amor, o desejo e os vínculos se transformaram na era da velocidade, da hiperconexão e do consumo afetivo. A gente vive o que o sociólogo Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida: tudo muda rápido, nada parece durar muito, e as relações humanas entram nessa mesma lógica. Os vínculos estão mais frágeis, menos comprometidos, mais “descartáveis”. E o Tinder é quase um símbolo disso. Deslizar para a direita ou para a esquerda se tornou uma metáfora do quanto passamos a escolher — e também a excluir — pessoas com um simples movimento de dedo, como quem escolhe uma roupa ou um filme na Netflix. Nesse contexto, como fica o amor? Como lidar com esse desejo de conexão em um ambiente em que tudo parece girar em torno da performance, da image...

Natal, afeto e cuidado

             Quando criança, nessa época do ano, eu procurava galhos secos para montar uma árvore de Natal. A casa onde cresci tinha um quintal grande, pelo menos aos meus olhos de menino. Naquele quintal, eu me divertia bastante! Havia um jambeiro, uma jaqueira, um abacateiro, uma mangueira e outras árvores frutíferas. Na frente da casa, havia um belo pinheiro. Quando encontrei o galho que considerei ideal, fui até o algodoeiro para colar algodão nele. Em seguida, peguei algumas caixas de fósforos vazias, as embrulhei como presentinhos e as pendurei na árvore. Minha expectativa era de que, ao chegar do trabalho, minha mãe se deparasse com minha obra de arte natalina. Na véspera de Natal, a casa ficava impregnada com o doce aroma das frutas dispostas em uma fruteira bem no centro da mesa. Como esquecer os panetones e aqueles bolinhos de bacalhau que minha saudosa avó preparava para comermos após a cantata de Natal? Tenho certeza de que, assim...